Caxias do Sul 26/04/2024

O recado histórico das taipas de pedra

Um patrimônio cultural mais que centenário e quase esquecido no Rio Grande do Sul
Produzido por José Clemente Pozenato, 12/12/2020 às 07:57:33
Foto: Marcos Fernando Kirst

Nos Campos de Cima da Serra – aí incluído o município de São Francisco de Paula, meu berço de origem –, o cercado das fazendas foi feito por meio de muros feitos de pedra, conhecidos pelo nome de taipas. Quem tomar a estrada rumo às praias do litoral, na direção de Torres ou na de Lages, certamente vai vê-las integradas à paisagem.

Alguns desses conjuntos, vistos à distância, parecem muralhas de uma gigantesca cidadela, tamanho o seu impacto visual. Embora não costumem ser vistas nessa perspectiva, as taipas de pedra são um verdadeiro patrimônio cultural. Grande parte dele é mais do que centenária e deveria merecer, por isso, um tratamento adequado ao seu valor.

O costume de dividir os campos teve início, segundo consta, na metade do século XIX. Até então o gado vivia solto, haragano, como se dizia. O cercamento surgiu quando a pecuária adquiriu o caráter de economia organizada, com a valorização do preço do couro e do charque. Isso fez com que se iniciasse a demarcação das propriedades e a marcação do gado, inclusive com regulamentação legal.

Antes das taipas de pedra, as divisas eram feitas aproveitando acidentes topográficos: sangas, arroios, capões, pontas de mato. A tradição oral atribui a ampla utilização das taipas como cercas divisórias ao fato de ser o arame um artigo raro, e de preço muitas vezes proibitivo, quando se iniciou a prática de divisão dos campos.

De acordo com a mesma tradição, as taipas, especialmente as antigas, foram obra de mão escrava. São elas construídas de pedras irregulares um tanto arredondadas, encontradiças nos campos. O transporte era feito com a zorra, uma espécie de forquilha sobre a qual as pedras eram levadas de arrasto.

Extremamente sólidas, mesmo que feitas em junta seca, as taipas divisórias de mangueiras e de piquetes podem ter a largura de cerca de um metro na sua base e uma altura de até dois metros. Nas divisórias de campo, essas dimensões podem ser mais reduzidas, com a altura mediana de um metro e meio. No passado, eram feitos também de taipa os mangueirões para mulas e para porcos à beira dos passos do rio Pelotas, na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina.

De taipas de pedra eram também os corredores para as tropas, próximos aos mangueirões: desses corredores restam ainda algumas ruínas próximas ao Passo de Santa Vitória, onde as tropas pagavam alfândega para cruzar a fronteira.

Segundo historiadores, em fins de 1869, o porto de Rio Grande começou a receber arame galvanizado, de procedência inglesa, comércio que se intensificou a partir de então, chegando à culminância em 1880. Iniciou-se então a era do alambrado, ou do arame farpado, que traria profundas mudanças no modo de ser e nos costumes do homem dos campos.

O trabalho campeiro foi todo ele afetado em sua forma: uma coisa era lidar com reses e cavalos quase selvagens nos campos abertos e outra, agora, lidar com um gado também ele domesticado pelas cercas. Uma coisa era percorrer os campos em qualquer direção, com carretas ou tropas, e outra bem diferente ter que seguir pelos “corredores”, que alongavam as distâncias.

É possível que a mudança ocorrida entre o antigo “gaudério” nômade e o agora peão sedentário tenha sido mais evidente, até mesmo dramática, nos campos fronteiriços do Rio Grande do Sul. Mas também nos Campos de Cima da Serra. Depois das cercas não haveria mais “rincões” – como o “rincão” em que nasci – onde viviam manadas de baguais xucros. E as taipas de pedra são o testemunho mais antigo e visível do início dessa nova era ou, sem excesso de retórica, desse novo ciclo civilizatório.

A presença das taipas na região é também indicadora de um saber fazer, de que caberia buscar as origens. De fato, a técnica de construir apenas por empilhamento de pedras irregulares, sem qualquer tipo de argamassa, e de forma a dar às taipas uma duração mais do que centenária, além de uma regularidade de valor estético relevante (ao menos nesta região), atesta a existência de mãos hábeis nessa tarefa, o que, por sua vez, costuma ser resultado de uma tradição conservada e transmitida por gerações.

As taipas de pedra demarcavam propriedades no interior do RS (Foto: Divulgação)

Mas sem dúvida ter-se-á que buscar bem longe, talvez na tradição portuguesa, a origem da técnica de construção de taipas com pedras irregulares. Foram os portugueses que iniciaram, no período colonial, o seu uso no calçamento de ruas mas também na construção de muros – tanto muros de contenção como divisórios – pela técnica de empilhamento, chamada de junta seca.

Tudo isso está bem atestado na iconografia do barroco mineiro. E era para as cidades das Minas Gerais que convergiam as tropas de mulas que saíam da Província de São Pedro, cruzavam o Campo das Lagens e o interior paulista, ainda no século XVIII, criando assim um canal de comunicação e, portanto, de trocas culturais entre o centro e o sul do país.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.

mail pozenato@terra.com.br

Do mesmo autor, leia outro texto AQUI