Caxias do Sul 29/03/2024

O pendente de bronze com cúpulas de cristal

Eu não era o neto favorito, mas não tenho dúvidas de que tal investida tenha dado uma bela melhorada em meu posicionamento no ranking
Produzido por Felipe Atti dos Santos, 21/02/2022 às 10:37:14
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Estávamos, eu e minha esposa Leila, tomando as providências necessárias a quem muda sua moradia de estado: atualização de endereço junto ao Departamento de Veículos Automotores a fim de obter as placas da Georgia para o carro, em cuja direção nos revezamos para trazê-lo na mudança de Connecticut, passando pelos estados de Nova York, Nova Jersey, Pennsylvania, Maryland, West Virginia, Virginia.

Isso sem falar nas milhas e minutos a mais que optamos por rodar no Tennessee com o objetivo de evitar as obras na estrada nos arredores de Charlotte, na Carolina do Norte, por onde passamos um mês antes, quando eu trazia o carro da empresa para seu novo endereço. A saga valeu por ter nos propiciado a experiência de almoçar no Perkins Restaurant and Bakery, onde uma senhora que certamente já passava de seus setenta anos de idade, vaidosamente maquiada, recebia os clientes à porta demonstrando orgulho pelo ofício e com a típica hospitalidade que eu esperaria de um sulista norte-americano. Pretendo visitar outro Perkins e avaliar se, além da comida exemplar, a hospitalidade da senhora que nos conduziu à nossa mesa também faz parte dos elevados padrões de qualidade da franquia.

Durante o processo de registro de veículo de outro estado, é necessário fazer o teste de emissão de poluentes, etapa que foi realizada numa pequena oficina mecânica, gerenciada por duas senhoras, encantadoramente trabalhando faceiras ao redor de seus sessenta anos de idade. A primeira delas com quem falei perguntou-me algo que, em português, soaria como “Alguém já lhe atendeu?”, ao que respondi, sorrindo: “Não, e a menina sentada atrás do balcão brincando com a boneca sequer tentou me atender.”

O teste foi executado pela segunda senhora, Pamela, enquanto nos entretinha e dava as boas-vindas, perguntando como e por que viemos parar na Georgia, ao que um dos mecânicos, observando as placas azuis do estado de Connecticut em nosso carro, nos interrompeu comentando que vínhamos de longe, ao pensar nos mais de mil e quinhentos quilômetros que distamos do local de nossa prévia morada. Então eu disse que, originalmente, viemos do Brasil, levados primeiramente a Connecticut pela mesma empresa Sueca que agora nos trazia ao sul dos Estados Unidos, e o rapaz prontamente complementou, bem-humorado: “Brasil? Continua sendo longe da Georgia.”

Em nosso novo lar, encontramos diversas pequenas coisas que, ao que tudo indica, não puderam ser consertadas pela moradora anterior. Entre os itens merecedores de atenção, há uma luminária pendente sobre a mesa de jantar, que conta com lâmpadas queimadas e que, em vez de receber novas lâmpadas, em breve será trocada por inteiro. Cabe ressaltar que brevidade é algo relativo, basta fazer a mesma pergunta a um marido e à sua esposa para perceber o contraste de expectativas que a subjetividade acerca do tema pode trazer à tona.

Tais lâmpadas queimadas me fizeram lembrar de minha avó Lourdes e da sala de jantar, cujo uso era reservado a banquetes familiares em datas festivas ou a visitas especiais em sua casa na Avenida Itália, bairro São Pelegrino, em Caxias do Sul.

A iluminação da sala de jantar de minha avó era proporcionada por uma luminária pendente em bronze fundido com cúpulas de cristal para seis lâmpadas finas em forma de vela. A cada acionamento da luminária, podia-se sentir uma aflição como aquela de encarar uma roleta russa: quantas lâmpadas encerrariam suas vidas úteis por serem incapazes de sobreviver ao momento do acendimento?!? Era nítida a apreensão da avó e havia netos mais corajosos, dispostos a testar a sorte, que se ofereciam para assumir os riscos decorrentes do acionamento das teclas e, frequentemente, a tarefa resultava em frustração da maioria, ainda que alguns conseguissem rir pela confirmação da previsível falha.

Cabe ressaltar que, na época retratada nesta parte da crônica, não havia lâmpadas de LED nem internet com seus fóruns de discussão onde buscar auxílio. Hoje me pergunto se alguma vez meu avô chegou a dizer, convicto: “Vou dar um jeito nessa luminária, em breve!”, a fim de acalmar sua esposa, e se minha avó teria acreditado nessas promessas.

Haviam se passado décadas e o problema persistia. Eu ainda não era engenheiro, mas, naquele momento, já revelava-se uma vocação, a “De Aplicações”. Tratei de encarar o problema e buscar uma solução dentre produtos comercialmente disponíveis, tendo como preocupação secundária o risco de criar expectativas e, assim, acabar me colocando numa situação vexaminosa na frente da família.

A consciência de que é imprescindível atender a padrões de confiabilidade e segurança, manter-se dentro uma meta orçamentária, com prazo de entrega aceitável e tendo como argumento de venda a relação custo/benefício, são abordagens que acabariam vindo depois que a atividade tornou-se trabalho. Da fase da brincadeira, mantenho a capacidade de me alegrar ao deparar com a visível satisfação de clientes.

Por acaso algum leitor teria o contato do professor Antonio Branco, que lecionava eletrônica no Senai Nilo Peçanha em 1991? Foi ele quem explicou que as lâmpadas incandescentes tendem a queimar no instante do acendimento, por ser este o momento de maior estresse, pois o regime estável de funcionamento de uma lâmpada somente é atingido depois que seu filamento chega à temperatura projetada, chamada de incandescência, e, durante a fração de segundos disponível para seu pré-aquecimento, a integridade do filamento é desafiada por um surto de corrente elétrica simplesmente por ele estar frio a cada acendimento.

Com base neste contexto, conclui-se que bastaria implantar um sistema que acendesse as lâmpadas à meia-luz, de forma que o pré-aquecimento se desse de forma branda. Convenci minha mãe a ir comigo ao Magnani, na Pinheiro Machado, pois eu precisava de alguém disposto a investir na compra de um dimmer.

Chegava então o momento em que minha avó finalmente pôde ver algum resultado útil a partir do espírito curioso do neto que, desde criança, demonstrou fascínio por fios e cabos elétricos (cabe ressaltar que são objetos que jamais deveriam ser descartados por esposas organizadas/organizadoras, pois nunca se sabe quando poderão ser úteis).

Após instalar o dimmer, as lâmpadas em formato de vela deixaram de queimar, e a expressão facial da avó passou de um estado de apreensão para alegria em relação à performance literalmente brilhante da luminária pendente de bronze em sua sala de jantar. A curvatura das articulações de seu dedo indicador, que davam a impressão de ter sido adaptado para segurar seus cigarros, parecia se adaptar perfeitamente à forma do botão giratório de acionamento do dimmer.

Eu não era o neto favorito, mas não tenho dúvidas de que tal investida tenha dado uma bela melhorada em meu posicionamento no ranking, ainda que de forma efêmera, visto que faltou consistência e regularidade na entrega de melhorias à cliente por parte do aspirante a Engenheiro de Aplicações.

Outra grata lembrança que guardo do convívio com minha avó é o fato de que, durante meus anos universitários, os telefones não eram smart, de forma que não havia nada que distraísse meu olhar dos olhos dela nos finais de tarde em que a visitei, quando eu tinha o privilégio de me divertir ao entrevistá-la em busca de detalhes novos, pelo menos para mim, ao ouvir as mesmas histórias de sempre, pela enésima vez.

Felipe Atti dos Santos é natural de Caxias do Sul, engenheiro mecânico formado na UCS. Reside nos Estados Unidos desde maio de 2019, onde trabalha como Engenheiro de Aplicação na filial americana da empresa KraftPowercon.