Caxias do Sul 20/04/2024

O inspirador do Padre Giobbe

Religioso citado nas memórias de Francisco Paglioli serviu de molde para personagem de trilogia da imigração
Produzido por José Clemente Pozenato, 28/04/2022 às 10:01:47
Foto: Marcos Fernando Kirst

Quando programei escrever a minha trilogia de romances sobre a imigração italiana na Serra Gaúcha, saí à procura de uma figura que deixasse bem à mostra o papel da Igreja no processo histórico e cultural das colônias. Essa figura deveria ser um padre, mas um padre capaz de mergulhar bem fundo na mentalidade do imigrante que chegava, fosse homem ou mulher, e nos desafios e riscos que iriam surgir à frente deles.

Como a sorte sempre me acompanhou, fui presenteado com o modelo que eu procurava no caderno de memórias de Francisco Paglioli. Por sinal, no último episódio ali narrado:

Convidaram-me para cantar uma missa em uma igreja no município de Bento Gonçalves; quem me convidou foi um discípulo (meu) de música, que já tinha uma pequena e boa banda de música naquele lugar.

Paglioli não dá o nome da igreja onde iria cantar. Mas como o celebrante morava em Nova Vicenza (hoje Farroupilha), o local deve ter sido uma capela de colônia entre os dois atuais municípios. Este é o retrato que Paglioli dá do padre, aqui transcrito ao pé da letra para não perder o sabor original:

Chamava-se Dom Giacomo Brutomesso, era um excelente padre, e muito caritativo, muito amigo dos pobres. Chamou-me e disse:

- Francisco, vamos tomar um copo de vinho branco; o festeiro tem um que é especial.

Sentamos ambos à mesa e veio um litro do tal. Tomamos o primeiro copo e depois, eu gostava, enchi o meu copo novamente, e não me lembrei do outro (i. é., de encher o copo do padre).

- Meu amigo – disse ele, - pensas que não gosto?

- Perdão, reverendo - disse-lhe, - foi distração minha.

Continuamos a palestrar, e disse-lhe que ia mudar-me com a família para Cima da Serra, mas que estava receoso porque aquele lugar era inconveniente para quem tinha uma família de muitas criancinhas como eu, pois não havia quase famílias.

- Lá ofereceram-me um emprego. Não há sapateiro, e poderei sustentar minha família mais fácil.

Ele disse:

- Pois vá. Quando a gente quer se comportar honestamente, até em casa do diabo pode fazer o bem; vá, e cuida da tua família, Deus te protegerá.

Ali estava um bom modelo para o personagem que eu imaginava. Fui então pesquisar quem foi o padre Giacomo Brutomesso. E descobri o seguinte: uns dez anos depois da ocupação da Colônia Caxias, uma leva de vicentinos – entre eles meu bisavô Giovanni Posenato – se instalou nas terras onde hoje é o bairro São Vicente, em Farroupilha, dando ao lugar o nome de Nova Vicenza.

Ali instalados, fizeram um projeto de construir uma igreja, em honra de São Vicente, e de conseguir a vinda de um padre da Itália. Um dos moradores, de nome Domênico, conhecia o padre Giacomo Brutomesso, e sabia que ele gostaria de acompanhar os imigrantes no Brasil. Fez contato por carta e conseguiu a vinda do padre. Assim que este chegou, em 1886, tratou de ajudar na construção da igreja, feita de tábuas, e de prestar auxílio a todos que precisassem de alguma ajuda e apoio.

Da figura de Dom Giacomo Brutomesso emergiu então o Padre Giobbe dos meus romances, também ele um consolador e um exemplo de tolerância e de paciência...

Devo, portanto, imensa gratidão ao caderno de memórias de Francisco Paglioli que tem grudada no final uma fotografia dele: é um músico com um paletó em estilo de farda, com duas filas de botões, boné com penacho caindo sobre o ombro direito, mão direita apoiada num pistão e mão esquerda apoiada numa mesinha de um só pé, com toalha de crochê e cesta de flores. Ao pé da foto está escrito, com letra diferente da usada no caderno:

1900 – Francisco Paglioli – Mestre da Banta Sta Cecília – Caxias.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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