Caxias do Sul 06/05/2024

O buraco de Caxias

Orifício misterioso no solo de localidade caxiense intriga estudiosos e cronistas
Produzido por Paulo Damin, 05/05/2023 às 08:04:07
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Existe um buraco em Caxias do Sul. Maior do que este que sentimos nas tardes de domingo, quando nos despedimos da namorada e temos de trabalhar na manhã seguinte. Maior até do que aquele que vem na frase “Caxias é um buraco”, dita por quem compara as aspirações culturais deste município com as de, digamos, Londres, ou mesmo Porto Alegre.

O buraco a que me refiro tem a ver com a história desta terra antes, durante e depois da colonização por europeus. É um buraco de interesse arqueológico, antropológico. Fica na Água Azul, em Santa Lúcia do Piaí.

Taí uma pista: Piaí. Um eco indígena em meios itálicos. É um rio, afluente do Caí. Tudo indígena esses rios. Tudo indígena no Brasil. Todos os imigrantes beberam dessas águas. Os Damin, os Vergani do Piaí.

Segundo Nelson França Furtado, no livro Vocábulos indígenas na geografia do Rio Grande do Sul, “piaí” é uma forma reduzida de “apiahy”, que vem de “apyaba” (homem, macho) e “y” (água, rio). Portanto, é o rio dos homens. Mas também ecoa “pyá”, que significa entranhas, coração. Isso em tupi ou guarani. Suponho que os kaingang e os xokleng, habitantes originários da região, tenham também suas denominações para o rio. Quando der, vou perguntar.

O buraco está na atual propriedade dos Vergani. Hoje, tem uns cinco metros de fundura, porque a terra vai se preenchendo, as árvores vão nascendo dentro e os tatus cavam, por sua vez, novos buracos no buraco. Originalmente, devia ter uns quinze metros de profundidade e uns cinco de diâmetro. O povo armava por cima uma estrutura de madeira, botava telhado. Dava para fazer fogo no fundo.

O buraco era uma verdadeira casa. Os ancestrais dos xokleng e dos kaingang eram ótimos arquitetos. Imagino os construtores originários mil anos atrás, num fim de tarde que nem hoje, de fogo aceso contra a neblina, comendo pinhão, discutindo se deviam partir para um lugar menos hostil do que a serra.

Embora eles tivessem coisas mais interessantes para conversar, suponho com minha mente de fog, branco como a neblina. Mas é que eu gostaria de estar lá no momento, para escutar a resposta a essa questão que, num fim de tarde que nem hoje, comendo pinhão, ecoa no meu “pyá”, no buraco do meu peito.

Agradeço à Mônica que, no domingo, em vez de me chamar para tomar cerveja em posto de gasolina, onde o vazio só seria ampliado, me convida para visitar buracos que preenchem o que trago em mim.

Paulo Damin é escritor e tradutor em Caxias do Sul.

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