Caxias do Sul 18/05/2024

Não estou aqui para perdoar

Somente nos cabe minimizar os estragos de uma convivência com pessoas que vivem de maneira muito diferente da nossa
Produzido por Neusa Picolli Fante, 17/03/2023 às 14:22:44
Foto: Morgane Coloda

Essa frase do título apareceu num rompante na conexão da minha mente com o meu coração...

Acredito que o perdão é a lição difícil que precisamos aprender, uma das mais difíceis. Até porque, depois de ficar no “perdoo, não perdoo, perdoo só uma parte, uma partezinha talvez”, me dou conta que, acima de tudo, ele se efetiva via compreensão...

Entender, mastigar inúmeras vezes o que aconteceu, até ser digerível - faz parte... Sim, algumas situações são difíceis de engolir, caímos no “eu não mereço”, “não podia ter acontecido”, entre tantas outras abordagens daquele mesmo fato... E o que fazer, além de juntar os caquinhos espalhados e seguir adiante?

O que pensar, sentir, além de “nos” olharmos e perceber que somos seres diferentes, com criações singulares, famílias diversas e aprendizados distintos (estes, então, nem se fala)? Cada um, no universo em que está envolvido, aprendeu à sua maneira. Pensa e sente de acordo com as informações que subtraiu do seu pequeno mundo.

Ali estamos nós, olhando para o certo e o errado, que têm eco no nosso íntimo. E, depois de uma grande reflexão, percebemos que a ninguém pertence esse “ele estava totalmente certo” ou “totalmente errado”. Somente nos cabe minimizar os estragos de uma convivência com pessoas que vivem de maneira muito diferente da nossa, cujas lições e aprendizados diferem de como construímos em nós essas equações emocionais.

Percebem-se pessoas que, depois de um solavanco da vida, andam arqueadas, se arrastam pelos caminhos da vida, e pior, o brilho do olho se foi... O que fazer para se resgatar?

Quem sou eu para perdoar ou não? Quem sou para desenhar um X na testa de algumas pessoas e dar o meu veredito?

Não posso fazer isso com o outro e nem deixar que o façam comigo. É questão de respeito a ele e a mim.

Que culpa o outro tem de não enxergar os fatos, os sentimentos, como você? A vida dele foi diferente da sua. Os recursos que ele criou também foram divergentes, contrários talvez, dos seus. Então, ele não conseguiria agir do jeito que você imagina, como você deseja, como seu coração quer. Ele faz do jeito dele, nas atrapalhações ou não, mas é como ele se construiu.

Uma vez que perdoar envolve alguém que se sobrepõe, que é melhor, que sabe mais, se eu perdoo, estou acima do outro... E, vamos combinar, aqui na Terra, ninguém está acima ou abaixo de ninguém. Não acha? Ou você se sente superior ou inferior? Se sim, procure ajuda, talvez uns bons óculos, para enxergar melhor a vida e o que aqui viemos fazer, lhe faça bem. Coloque-se no princípio da realidade e encontre um lugar mais confortável para ficar, porque você deve estar se sentindo um pouco perdido no lugar em que está.

Então é “cada um que se salve”. Isso? Sim, mas com acolhida, com entendimento, com respeito e com compreensão do que está sendo vivido. Lembre que vínculo seguro sabe pedir ajuda, mas esse é um assunto para outra crônica, que vai nascer sem demora... Acima de tudo, que você se perdoe e que compreenda o que viveu...

Resgate o autoperdão, nele eu acredito, sim. Pois necessito aliviar minhas angústias, soltar as amarras que me prendem em alguns pensamentos, tristezas, ideias, vivências... E, assim, tornar livres e fluidas algumas memórias.

Divagando nesse perdão (eu comigo mesmo), percebo que implica em mergulhar para dentro, com profundidade, empatia, respeito a mim – principalmente. E, ao olhar a minha tentativa de fazer o melhor no passado - mesmo que não tenha surtido o efeito desejado, percebo que fiz o mais adequado que sabia.

Resgatar-me agora se torna fundamental, sem julgamento, mas com amorosidade, afinal, os olhos com que enxergo meu passado são muito diferentes dos que viveram a dificuldade na época em que tudo aconteceu... Então, eu mudei e o outro também!

Mas, se mudamos tanto assim, por que continuam amarrado a nós - a mágoa, a não compreensão, o perdoo e o não perdoo? É hora de olhar para isso também...

Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas. É palestrante e escritora, autora de oito livros: três de psicologia, três de crônicas e dois de poesia.

Da mesma autora, leia outro texto AQUI