Caxias do Sul 24/04/2024

Dicionário do Ítalo-Português

A contribuição do Talian para o enriquecimento da língua portuguesa falada no Brasil
Produzido por José Clemente Pozenato, 30/09/2021 às 08:37:18
Foto: Marcos Fernando Kirst

O imigrante italiano não apenas criou uma nova língua – o Talian, reconhecido como patrimônio linguístico brasileiro – como contribuiu com vocábulos que foram sendo incorporados ao português falado no Brasil.

Nem todos esses vocábulos, porém, obtiveram ainda acolhimento nos dicionários. Para fazer um teste, fui conferir o Dicionário Houaiss e encontrei apenas quatro palavras vindas com os imigrantes ali registradas, com as respectivas definições:

Carriola: carro de duas rodas, pequeno e ordinário.

Galeto: frango novo que se prepara assado no espeto.

Minestra: sopa de arroz ou massa, com legumes e verduras; sentido figurado: jeito ou astúcia para se conseguir alguma coisa.

Polenta: pasta de fubá de milho com água e sal, a que se pode acrescentar manteiga ou queijo.

Algumas observações curiosas:

- a palavra carriola eu a conheci sendo usada na expressão “to nona in carriola”, usada para despachar alguém que está incomodando; e é estranho que o dicionarista tenha usado o adjetivo “ordinário” na sua descrição, sabendo que este adjetivo tem também sentido pejorativo, e não somente descritivo;

- a definição de minestra vem acompanhada de um segundo sentido figurado, não conhecido por aqui. É possível que seja um regionalismo paulista, onde o italiano se misturou com o caipira, gerando situações e tipos cômicos também na linguagem. Talvez por esse motivo figure no dicionário;

- na definição de polenta há também vários elementos estranhos; o primeiro é designá-la como “pasta”, ao invés de “massa”; segundo, dizer que é feita de “fubá de milho”, e não de “farinha de milho”; terceiro, acrescentar manteiga ou queijo na receita; por último, não esclarecer que a polenta é uma massa cozida na panela, com uso da mêscola , uma espátula de madeira.

É possível que haja, neste e em outros dicionários, o registro de mais vocábulos oriundos da imigração italiana. Com base em minha experiência pessoal, posso enumerar uma lista de palavras que não faziam parte da língua portuguesa que estudei na escola, todas elas aprendidas em andanças na região de imigração italiana da Serra Gaúcha. E todas elas fazem parte do vocabulário comum da maioria de seus habitantes.

Faço aqui uma relação delas, com a grafia que teriam num dicionário ítalo-português, e em ordem alfabética:

Letra A: anholine (todos sabem o que significa!).

Letra B: bacalá (bacalhau); baúco (bobo); bígoli; biguncho; bordalesa; bordel (no sentido de baderna, bagunça, confusão); brodo; brontolar; brustolar.

Letra C: cantina (no sentido de depósito de vinho); capela (no sentido de pequena igreja); capelêti; cinquilho (nome de um jogo de cartas com cinco participantes); codeguim; colono (no sentido de grosseiro).

Letra F: fregolá (palavra usada no filme “O Quatrilho” pela Tia Gema: “prima le patate, dopo ‘l fregolá”; isto é: serve primeiro as batatas para matarem a fome, depois um pouco de doce como é o fregolá).

Letra G: galhota (carrocinha de duas rodas, de tração manual, para transportar produtos da horta e da roça).

Letra M: mêscola (pau de mexer polenta; em sentido figurado, símbolo do poder da mulher).

Letra N: nhampo (pateta, bobalhão); nhóco (soco, murro; e também, em sentido figurado, estúpido); nono (avô); nona (avó).

Letra P: pâmpano (broto da parreira; em sentido figurado, moleirão, boca aberta); pien (recheio delicioso posto dentro da pele do pescoço da galinha).

Letra Q: quatrilho (mesmo depois de a palavra ter se generalizado, não consta em nenhum dicionário da língua portuguesa...).

Letra R: radite (outra palavra generalizada e ainda não dicionarizada).

Letra S: sagra (no sentido de festa do santo padroeiro).

Letra V: verderame (sulfato de cobre, usado para prevenir o mofo nas parreiras).

Isso só para dar uma amostra das trocas linguísticas ocorridas com a imigração: não só o Talian adotou palavras do Português, o Português também incorporou palavras do Talian. Só está faltando esse reconhecimento, que poderia começar com o vocábulo QUATRILHO! Ele foi pronunciado até por Mel Gibson na cerimônia do Oscar...

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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