Caxias do Sul 03/05/2024

Desvio morto

Sobre o que os desenganados descobriram naquele ponto dos trilhos
Produzido por Paulo Damin, 28/11/2023 às 08:37:54
Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Ali em cima passava o trem, onde agora a piazada vive debaixo das árvores fumando. E tomando cachaça, que é o jeito, tem uma coisa que pede, parece. Pelo menos fizeram um tipo duma praça, o pessoal fica sentado. Essas casas tudo foram sendo feitas na época da ferrovia, tudo gente que veio de fora, Vacaria, Bom Jesus, trabalhar na ferrovia. Ficaram. Tudo beco enviesado, as rampas no morro.

Se tu reparar bem dá pra ver que ainda tem dormentes bem bons. Mesmo os com broca: secaram. Dá pra construir uma casa inteira com o que tem ali, de firme que é. Imagina: anos no sol, na chuva, debaixo do trem, não empena nunca mais. Nem as árvores conseguem vir de baixo envergando aquilo com as raízes.

E tem o ferro, os trilhos. Às vezes só ficou a alma, que o patim foi carcomido pelos autos. É o nome: patim. A gente usava na fábrica lá, mesma coisa. O desvio morto na ponta deixaram não sei por quê. Encruzilhada, que nem diz o outro. Pode olhar que botaram o asfalto por cima e a terra engoliu de volta: ficou só o ferro, lisinho lisinho.

Diz que em noite de lua nova vem uma luz. Nas outras dá choque, diz que. O barulho já soa mais mentira, mas a luz todo mundo fala, na rua. A gurizada que fica fumando tira sarro, vão dizer que é bobagem de velho, até que eles se sentem convidados. É os com cachaça, dizem. Se tá tomando cachaça é porque tem coisa que pede.

Que nem o mais novo da Salete. Uma noite ela tinha pedido pro filho ir pegar sálvia no trilho, a melhor é a que cresce no dormente, na crista do lastro. É o nome que deram, parece coisa de galo, o lastro, diz o véio Rudi, ele trabalhou na ferrovia, diz ele. Lua nova, lá a luz, de cheio na cara do guri desprevenido. A fumacinha da cerração.

Que piada é essa, diz ele, pensando que decerto era pegadinha da gurizada que fica fumando.

O trem estacionou. Aquele rangido da chave falsa. Esse barulho sim que tem. Até a Salete ouviu da casa dela, deu um sobressalto. Foi olhar não tinha mais nada, só aquele maço de salsa no dormente.

Eu que não vou conferir, mas virou costume dos doentes. Os desenganados mesmo. Toda lua nova é aquela fila. Se despedem em casa, cachaça na mão, pra não precisar mais pagar o médico, dizem. Vão lá no trilho, no desvio morto, o nome que deram. Botaram até um banquinho agora. Que nem parada de ônibus na beira da estrada.

Depois não voltam. Diz que funciona direitinho.

Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.

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