Caxias do Sul 18/05/2024

Corujinha, corujinha

Mesmo de costas, ela parece disposta a me encarar a qualquer momento. Acusadora? De quê?
Produzido por Paulo Damin, 20/11/2022 às 09:05:47
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Tem uma coruja me encarando. Ou eu é que estou encarando ela? Se é que uma coruja entalhada em madeira permite reciprocidade. Ainda mais de revesgueio.

Só que ela é caingangue. E quem me deu foi uma mulher. Meio caingangue. Tem um efeito. Uma interpretação transcendental. Eu, que não alcanço voo tão alto, vou passar a vida nisso. Olhando o olho do tabu, tentando fazer dele um totem. Até que vire recíproco. Fala, fala!, diria Michelangelo. Mas são duas da manhã em Caxias do Sul e eu sou descendente de cúmplices.

Sei que é pinus, a madeira. Leve como uma lauda. Sei que as penas pretas foram feitas com pirógrafo, caneta de fogo com que eu brincava na infância, filho de marceneiro. Mas o espanto dos olhos, o encolhimento das asas: o bichinho está sentindo o mesmo frio neste novembro. Se giro ela, ela me olha com o rabo dos olhos. E com o rabo rabo mesmo, que ela tem um. Eu meto o meu entre as pernas.

Mesmo de costas – girei ela de novo – ela parece disposta a me encarar a qualquer momento. Acusadora? De quê? Nasci nos anos 1980, meu pai da fronteira, minha mãe da Jaquirana. Será pelo pinus? Culpa pelos pinheiros que meu nono derrubou sobre si mesmo quando peão na Vila Oliva?

Acho que o lance está no fato de ela guardar as pálpebras. Recolhê-las rapidamente como as indígenas. Como a mulher que me deu o totem. Olhar de quem já viu tudo, antes de que percebêssemos o risco da piscada. Muito, demais, alerta. Está vendo algo intolerável, se prepara nas penas pintadas a fogo.

O que estás vendo, corujinha? Terei dito algo bárbaro? Até agora não errei o português! Ou será exatamente isso?

O teu canto, de repente, faz a gente estremecer, diz a Elis, trêmula, cantando Vinicius. Por que será que a gente se dirige a ti com tanta solenidade?

Será o troço grego, de teres protegido o Odisseu que queremos ser até a Ítaca que nos espera? Será o fato de hoje representares uma sobrevivência para os indígenas desta Guerra de Traíras?

Corujinha, corujinha, que lindinha que é você. No crepúsculo da Sabedoria, as respostas vêm de ti.

Giro ela de novo. Enfim um ângulo em que olhamos para a mesma direção: o texto. Viu, corujinha? A parede. Esse contexto que devemos transpassar. Depois é a transcendência. O fato de que não sabemos. Encarar, olhos nos olhos: além. Confrontar esse além. É o olhar que nos resta.

Paulo Damin é escritor e tradutor em Caxias do Sul.

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