Caxias do Sul 25/04/2024

“Amarcord”, fellinianas memórias e fabulações

Para recordar Federico Fellini no centenário de seu nascimento, um filme sobre lembranças
Produzido por Eulália Isabel Coelho, 17/05/2020 às 09:07:14
Foto: LUIZ CARLOS ERBES

Por Eulália Isabel Coelho

Do meu primeiro Fellini guardo uma espécie de luz esfumaçada, talvez neblina em tons azulados. Mas isso pode ser equívoco da memória, sempre passível de enganos e exageros. De qualquer modo, não pretendo desfazer essa lembrança.

Acho mesmo que Federico, com seu apelo à fantasia e aos devaneios, poderia gostar disso, caso me conhecesse. Imaginei-me algumas vezes no Estúdio 5 da Cinecittà, a Hollywood italiana, vendo-o dirigir Marcello Mastroianni ou sua mulher, Giulietta Masina, que ganhou até música de Caetano Veloso.

Federico Fellini (1920-1993) queria fugir com o circo na infância, era louco por histórias em quadrinhos (os gibis como se dizia na época) e, na juventude, foi jornalista e caricaturista. Fez sátiras em jornais e revistas, escreveu roteiros de piadas para comediantes de rádio e criou enredos para fotonovelas.

Migrou para o cinema como assistente de direção dos grandes Roberto Rossellini e Alberto Lattuada. Em 1952 dirigiu seu primeiro filme solo, “Abismo de um sonho”. Dali em diante, o cinema conheceria um de seus maiores nomes.

Fellini em seu ofício de grande mentiroso

Segundo o repórter Juan Arias, que o entrevistou inúmeras vezes, Fellini só conversava com jornalistas usando seu chapéu de feltro e o cachecol, mesmo no verão. No livro “Fazer um filme”, com textos do cineasta, descobrimos sua nostalgia pelo mar, o fascínio por Gustav Jung, fundador da Psicologia Analítica, e pelo pintor espanhol Pablo Picasso. Seu apreço pela filosofia oriental e pelo espiritismo. Certa vez, o cineasta revelou seu respeito por mulheres de formas generosas. Sua primeira experiência sexual foi com uma e ele as reverenciou em seus filmes.

Em entrevista, declarou que “o presente desmorona sob nossos passos, tudo não é mais do que um caos vertiginoso sem pé nem cabeça”. Talvez por isso retornasse sempre ao passado em suas obras, reinventando-o, particularizando-o com alguns fatos pessoais ou simplesmente misturando tudo em uma espécie de alquimia.

Magali Noe (de vermelho) é La Gradisca

Dessa forma expressava o seu modo singular de enxergar a vida. O diretor insistia que tudo sobre ele estava em seus filmes. No mais, dizia que “cada um criou um Fellini à sua medida”. Uma de suas mais famosas frases revela muito sobre ele e seu trabalho: “Fellini não existe”.

MINHA CLAQUETE

O Fellini, à minha medida, é o de Amarcord (1973), que lhe rendeu o quarto Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Os anteriores foram para “Na estrada da vida” (1954), “As noites de Cabíria” (1957) e “Oito e meio” (1963). O cineasta também recebeu diversos prêmios nos festivais de Cannes e de Veneza, entre outros.

Em “Amarcord”, Fellini alude à sua infância e juventude em Rimini, sua cidade natal. Escrito em parceria com Tonino Guerra, a obra traz personagens peculiares e certas estranhezas essenciais ao escopo felliniano. “Amarcord” que remete à expressão “eu me lembro” no dialeto da sua região, é um filme definitivo sobre recordações sob a trilha magistral de Nino Rota, seu colaborador em muitos trabalhos. Por ser estruturadamente não-linear, as sequências interligam-se como se fossem recortes de memória, o que produz um efeito de sonho. Isso faz transbordar em nós mesmos a aura das fabulações.

O fascismo que ganhava corpo na Itália nos anos 1930 está ali representado em meio a extravagâncias que nos atraem irremediavelmente. “Amarcord” é experiência onírica a qual posso retornar como se fosse sonho recorrente. O filme não traz protagonistas nem antagonistas, é o jovem Titta (Bruno Zanin) que nos conduz por essa viagem ao inconsciente de Fellini e às suas memórias.

O diretor sempre negou que a obra fosse autobiográfica, dizia que era tudo “inspiração inventada”. Além disso, costumava afirmar: “Sou um grande mentiroso”. Como não se encantar com suas mentiras em tons satíricos?

A figura da madonna felliniana

Nesse universo de fantasias, “Amarcord” é a mais engenhosa delas. Vemos na tela a mulher/madonna, com quadris largos e seios fartos, o homem que grita por amor em cima de uma árvore, a ninfomaníaca da cidade, um vendedor que conta causos e tantos outros personagens que descortinam a atmosfera de sensações produzidas pelo cineasta. É da ordem do sublime a aparição do transatlântico Rex, com suas luzes e mistérios, uma das mais belas sequências da cinematografia mundial. Alguns estudiosos dizem que essas cenas antecipam “E la nave va” (1983).

Amarcord” figura entre os mais lembrados em listas de grandes filmes. Com sua tessitura simples e comovente, evoca o cômico e o trágico. Ainda que alguns espectadores possam se sentir confusos diante da narrativa (ou não-narrativa, depende do olhar), é justamente ela que diferencia essa obra das demais. Então, basta ajeitar-se na poltrona e se permitir a fruição desse liame de beleza plástica e simulações fantásticas. Experimentação que nos abraça, simplesmente por sermos humanos. Afinal, como explicou a atriz Sandra Milo, Fellini “tinha esse poder, uma arte a favor do ser humano, nunca contra”.

Assista aqui o trailer restaurado de AMARCORD

Sente o som: GIULIETTA MASINA, de Caetano Veloso

DE OLHO NO SET

Em 1993, Fellini foi agraciado com o Oscar Honorário pelo conjunto de sua obra.

Fellini e Giulietta foram casados durante 50 anos. Ela faleceu no ano seguinte à morte dele.

O cineasta gostava de cenários falsos, como o mar de plástico rasgado e neblinas de gelo seco.

O termo paparazzo foi cunhado em “La dolce vita” (1960) para o fotógrafo que acompanha o personagem jornalista de Mastroianni. Paparazzi é uma combinação de pappataci (mosquito) e razzo (flash), segundo explicação de Fellini.

Em 1945, o diretor foi co-roteirista de “Roma – Cidade Aberta”, marco do Neorrealismo Italiano dirigido por Roberto Rosselini.

Martin Scorsese revelou recentemente que revê “Oito e Meio” todos os anos por sentir-se magnetizado pelo filme.

Eulália Isabel Coelho é jornalista, professora e escritora

Leia também, da mesma autora: "O Homem Invisível" em roupagem inovadora