Caxias do Sul 07/05/2024

A Esperança de Davi

“A Ucrânia ainda não morreu, nem a glória, nem a liberdade” (Primeiro verso do Hino Ucraniano)
Produzido por Gustavo Miotti, 16/03/2022 às 16:30:01
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Visitei a Ucrânia no verão de 2019. O país vivia um clima de otimismo, o atual presidente Volodymyr Zelensky havia assumido o poder com uma vitória acachapante: mais de 73% do eleitorado havia se alinhado ao discurso pró-europeu e de reformas econômicas do jovem líder.

Recordo de contemplar, da janela do meu hotel, a vista da pomposa Catedral de Santa Sofia, no centro de Kyiv. Por alguns instantes, o entardecer fez com que o reflexo das suas exuberantes torres douradas obstruísse completamente a minha visão.

Hoje, olhando para trás, vejo o mesmo sentimento de bloqueio em poder avistar os eventos que estavam para se descortinar naquela terra que se localiza nos portões da Europa. Quem imaginaria que uma pandemia fosse colocar o mundo de cabeça para baixo e que a Ucrânia seria bombardeada e invadida pela Rússia, da mesma forma como foi feito pelos nazistas na II Guerra Mundial? Dessa vez, diferentemente da pandemia de 1918, a guerra sucedeu a pandemia.

Infelizmente, no desenrolar da história da Ucrânia, os cisnes negros são comuns e se apresentam como tragédias que se sucedem de tal forma que precisam ser contextualizadas para que não se perca o real tamanho da dor que é imposta a essa sofrida nação. A Ucrânia foi vítima dos dois principais tiranos da história quando lembrados pelo número de mortos: Stalin e Hitler.

Vista da pomposa Catedral de Santa Sofia, no centro de Kyiv, com suas exuberantes torres douradas (Foto: Gustavo Miotti)

O primeiro, principalmente com a pouco conhecida tragédia da Fome Vermelha ou Holodomor, quando a Ucrânia, então uma das repúblicas da União Soviética, sofreu uma catastrófica fome nos anos de 1932 e 1933. A estratégia de Stalin de coletivizar a produção agrícola de forma caótica fez com que milhares de camponeses ucranianos fossem forçados a deixar suas terras para se juntarem a fazendas coletivas estatais, sob domínio de Moscou.

Stalin culpou os nacionalistas ucranianos pela falha na estratégia e impôs que toda a produção agrícola da fértil Ucrânia fosse direcionada à Rússia. Além disso, fechou as fronteiras da Ucrânia para não permitir que seu povo fugisse. Os ucranianos se viram presos e, diante da falta quase total de alimentos, houve uma tragédia em que quase 4 milhões morreram de fome, cerca 15% da população do país.

O sofrimento do povo ucraniano foi tão grande que, quando o país foi invadido pelos nazistas, em 1941, boa parte da população apoiou o exército alemão, pois nada poderia ser pior do que Stalin. Novamente, a Ucrânia estaria no centro da atenção de um tirano. Já Hitler invadiu a União Soviética com o objetivo de controlar a Ucrânia, que, sendo o celeiro da Europa, iria poder alimentar as ambições expansionistas nazistas.

Se formos ponderar quem mais sofreu com a II Guerra Mundial, novamente a Ucrânia foi a grande vítima. O holocausto começou na Ucrânia em agosto de 1941 e, ao final da guerra, mais civis ucranianos morreram no conflito do que russos, não só em termos relativos, mas também nominais. Também, em termos relativos para nós ocidentais, mais ucranianos morreram lutando contra os nazistas do que americanos, britânicos e franceses combinados.

Mais recente, a explosão de um reator nuclear da usina atômica de Chernobyl, em 26 de abril de 1986, lançou o equivalente a 500 bombas de Hiroshima de material radiativo na atmosfera ao norte da Ucrânia, a cerca de 100 quilômetros de Kyiv. Por sua vez, o governo de Gorbatchov, em Moscou, não permitiu qualquer divulgação do acidente.

Apesar de o vento estar espalhando a radiação invisível no ar da capital, para dar um ar de normalidade, o governo soviético não cancelou a parada de 1º de maio daquele ano e milhares de pessoas saíram às ruas da capital ucraniana a apenas alguns quilômetros do local da explosão. A única coisa estranha na parada era a falta das autoridades nas arquibancadas e nas bancadas, que estavam completamente vazias. Os burocratas soviéticos haviam se mandado para Moscou com suas famílias logo após o acidente.

No mesmo dia, no sul da Alemanha, dez vezes mais distante de Chernobyl, foi detectado alto nível de radiação e o governo de Moscou foi obrigado a reconhecer o acidente. Além das mortes pelo acidente, ate hoje o pais paga com níveis de câncer causados pela radiação muito acima do normal.

Ironicamente, o evento é considerado o principal responsável pelo fim da União Soviética, o que levou à independência da Ucrânia em 1991 através de um referendum no qual mais de 91% dos ucranianos votaram pelo destino do país.

Novamente, a liberdade do povo ucraniano se vê vítima de um tirano. Putin, fantasiado como um antigo czar, nunca aceitou a existência da Ucrânia como estado independente – e, principalmente, democrático - e pró-Europa. Ele interferiu constantemente nas eleições e invadiu o país em 2014, após a derrubada de um governo corrupto pró-Moscou.

No ano passado, Putin publicou um longo texto sustentando, com uma visão paranoica, que os ucranianos são dominados por uma gangue de neonazistas, que o povo ucraniano desejava ser libertado e anexado à Rússia. O principal problema de um ditador como Putin é viver numa bolha, com servos que têm tanto medo de dizer a verdade que acaba perdendo o sentido de realidade. Putin fantasiava que as tropas russas seriam recebidas com uma chuva de rosas; porém, ucranianos estão jogando, sim, coquetéis molotov.

Apesar de todas as tragédias, nunca vi o povo ucraniano se lamentar ou vitimar, muito pelo contrário, são otimistas e orgulhosos com a sua independência. Um país que não quer ficar preso ao seu passado, pois ele não necessariamente determina o seu destino. Em contato com os amigos que fiz na viagem e que ainda estão em Kyiv, eles me afirmam que estão muito confiantes na vitória, apesar de estarem lutando contra uma superpotência militar. Através de seu inspirador líder, Volodymyr Zelensky, o povo ucraniano está defendendo o valor da democracia e da liberdade não apenas do seu país, numa batalha de Davi versus Golias.

Gustavo Miotti é economista, sócio da empresa Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.

mail gmiotti@rollins.edu