Caxias do Sul 01/06/2025

A era da ‘pejotização’

Entre a liberdade contratual e os limites da Justiça
Produzido por Ciane Meneguzzi Pistorello , 12/05/2025 às 08:29:37
Ciane Meneguzzi Pistorello é advogada
Foto: Luizinho Bebber

No começo era simples: trabalho era sinônimo de carteira assinada, direitos previstos, deveres claros. Mas o mundo mudou — e o Direito do Trabalho corre atrás, tropeçando, tentando alcançar a realidade.

A “pejotização”, palavra que virou protagonista nos tribunais, traduz essa transformação. Em alguns casos, ela representa liberdade e autonomia: profissionais qualificados, especialistas, donos de si mesmos, vendendo conhecimento e não horas. Em outros, porém, esconde uma face amarga: fraude, disfarce, precarização.

Recentemente, o STF decidiu suspender nacionalmente os processos que discutem a legalidade da contratação por pessoa jurídica (Tema 1.389), e mais uma vez jogou luz sobre o tema. A Corte vai definir se a pejotização é, por si só, legal, quem deve provar a fraude — empresa ou trabalhador — e se a Justiça do Trabalho é competente para julgar essas questões. Decisões que ecoarão longe, inclusive no Carf, onde a Receita já trava batalhas para cobrar contribuições previdenciárias sobre relações que, no papel, são de CNPJ, mas na prática soam como vínculo de emprego.

Como advogada, não posso deixar de refletir sobre os dois lados desse tabuleiro. Por um lado, vejo a autonomia legítima de quem empreende o próprio talento. Por outro, conheço de perto as histórias de trabalhadores que foram empurrados para abrir empresa, sem jamais terem exercido de fato qualquer poder de negociação.

As cortes estão sendo chamadas a desenhar limites num terreno movediço. O Carf, em decisões recentes, tem mostrado que nem toda contratação por PJ é irregular, especialmente quando envolve profissionais hiperssuficientes — aqueles que, segundo a CLT reformada, têm ensino superior e alto grau de autonomia. Já o STF deve dizer se, diante de indícios de fraude, cabe ao trabalhador provar o que viveu na prática, ou se será a empresa quem precisará justificar suas escolhas contratuais.

Para nós, advogados, esses debates não são apenas acadêmicos. Eles batem à porta do escritório todos os dias, com clientes que perguntam: “Posso contratar como PJ sem problema?”, ou trabalhadores que sussurram, quase envergonhados: “Doutora, eu era PJ, mas era funcionário como qualquer outro.”

A verdade é que, enquanto o Brasil se esforça para modernizar suas relações de trabalho, não podemos perder de vista o essencial: o Direito não existe para engessar a realidade, mas para protegê-la. Que as decisões que estão por vir não sejam apenas frias diretrizes jurídicas, mas um olhar sensível para as múltiplas formas de trabalho que surgem no mundo de hoje.

No fim das contas, pejotização não é boa nem ruim por definição. O que importa — sempre — é o que há por trás do contrato: subordinação ou autonomia, fraude ou liberdade. E cabe a nós, advogados, sermos não apenas intérpretes da lei, mas tradutores das vidas que passam por ela.

Ciane Meneguzzi Pistorello é advogada, com pós-graduação em Direito Previdenciário, Direito do Trabalho e Direito Digital. Presta consultoria para empresas no ramo do direito do trabalho e direito digital. É coordenadora do Curso de Pós-Graduação Latu Sensu em MBA em Gestão de Previdência Privada – Fundos de Pensão, do Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG.

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