O Salão Nobre da Rádio São Francisco respirava solenidade. Sindicalistas, acadêmicos e advogados — cada qual com seu olhar sobre o mundo do trabalho — aguardavam a fala do ministro Luís Roberto Barroso. No ar, a sensação de que discutíamos não apenas a CLT, mas o próprio pacto social que sustenta a dignidade da pessoa humana no campo laboral.
O ministro iniciou lembrando que já não vivemos a era do “metalúrgico” como paradigma exclusivo da subordinação. O sujeito contemporâneo do Direito do Trabalho é múltiplo: o motorista de aplicativo, o entregador de refeições, o empreendedor individual. Todos eles escapam à moldura clássica da subordinação jurídica prevista no artigo 3º da CLT, mas continuam clamando pela proteção que inspira o artigo 7º da Constituição Federal.
O debate jurídico, que atravessa tribunais, escritórios e audiências públicas, parece girar em torno de uma palavra: equilíbrio. Equilibrar a livre iniciativa, fundamento constitucional do art. 170, com a valorização social do trabalho, princípio do art. 1º, IV, da Constituição. Equilibrar a necessidade de inovação econômica com a vedação à precarização, que se apresenta como cláusula implícita do princípio da dignidade.
Os sindicalistas, presentes no evento, gritavam contra a pejotização. E, como advogada, pensei na jurisprudência que se forma em torno da chamada “fraude trabalhista” quando a prestação de serviços pessoais, contínuos e subordinados é mascarada sob um CNPJ. Recordei o art. 9º da CLT, que fulmina de nulidade os atos que visem a desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos trabalhistas.
Mas, de outro lado, havia a fala do ministro sobre flexibilidade. E não pude deixar de pensar no art. 611-A da CLT, inserido pela Reforma Trabalhista de 2017, que fortaleceu o negociado sobre o legislado em certas matérias. Ali se abre uma brecha — ou uma possibilidade — para que coletivamente se estabeleçam soluções sob medida para novas formas de trabalho, desde que respeitado o núcleo mínimo indisponível.
A inteligência artificial, apontada como força capaz de extinguir 85 milhões de empregos e criar outros 97 milhões, adiciona ainda mais complexidade. O desafio não é apenas de norma, mas de política pública: quem reconverterá o motorista em programador? Quem financiará a transição? O Direito do Trabalho, sozinho, não dá conta — mas precisa estar no centro da discussão para que a equação não sacrifique o hipossuficiente.
O ministro arrematou invocando Darwin: adaptabilidade como palavra de ordem. E eu, ao ouvi-lo, pensei que talvez a verdadeira evolução não seja abolir a CLT, mas permitir que ela dialogue com a realidade viva do trabalho contemporâneo. Que a lei conserve sua função protetiva — pois esse é o seu DNA —, mas que também se abra a interpretações construtivas, a negócios jurídicos processuais, a cláusulas flexíveis nos instrumentos coletivos.
Como advogada, sei que cada petição é atravessada por essa tensão: aplicar o rigor da lei ou reconhecer a mutação social que a ultrapassa. E talvez a tarefa de nossa geração seja justamente esta: costurar o tecido protetivo da CLT com linhas de adaptabilidade, sem rasgar o pano da dignidade humana.
No fim, voltei ao escritório e abri mais um processo sobre vínculo empregatício de motorista de aplicativo. Entre súmulas, teses de repercussão geral e audiências por vir, senti que estava vivendo, em escala micro, o mesmo dilema macro debatido naquela manhã. O que escrevo em minhas petições é, afinal, parte da história maior da evolução do Direito do Trabalho.
Ciane Meneguzzi Pistorello é advogada, com pós-graduação em Direito Previdenciário, Direito do Trabalho e Direito Digital. Presta consultoria para empresas no ramo do direito do trabalho e direito digital. É coordenadora do Curso de Pós-Graduação Latu Sensu em MBA em Gestão de Previdência Privada – Fundos de Pensão, do Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG.
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