Caxias do Sul 26/04/2024

A cerração e suas evocações

Em meio às brumas típicas do clima serrano, descortina-se um véu de recordações fellinianas
Produzido por José Clemente Pozenato, 20/05/2021 às 08:43:02
Foto: Marcos Fernando Kirst

A cerração que cobriu a Serra na segunda-feira de manhã, embrulhando a cidade de Caxias do Sul no seu véu úmido, me trouxe um rol de evocações.

A primeira, e não podia deixar de ser, foi a da minha infância em São Francisco de Paula. Nossa casa ficava na Boca da Serra, como se dizia, e quando chegava a cerração, ela durava no mínimo três dias. E era tão espessa que não dava para ver a estrebaria da janela da cozinha. O bom é que a gente passava o dia perto do calor do fogão, comendo pinhão assado na chapa. E algum pé-de-moleque.

A segunda foi a do filme Amarcord, de Federico Fellini, título que no dialeto de Rimini, lugar da infância do cineasta, significa eu me lembro. Pois o filme é repleto de evocações pessoais de Fellini e, não por acaso, envoltas em neblina.

Uma terceira evocação veio à tona ao lembrar a surpresa de um professor que veio de São Paulo para trabalhar na UCS. Um dia ele comentou comigo que estava espantado com o nevoeiro que ele via da janela do apartamento, avançando e cobrindo toda a paisagem. Tanto que um dia ele filmou o fenômeno para enviar aos colegas e amigos dele de São Paulo: “Lá é a terra da garoa, aqui é a terra da cerração”, sentenciou ele.

Neblina, névoa, nevoeiro, bruma, cerração: são muitos os sinônimos desse comportamento climático que envolve a Serra Gaúcha. Mas para quem acha que cerração é um regionalismo serrano, o Dicionário Houaiss informa que é um vocábulo do século XIV. Pode ser usado sem susto!

A evocação mais poderosa foi a quarta. Há uns quarenta anos, acompanhei um estudo sobre qual a melhor localização de um aeroporto de porte internacional na região, combinando ao mesmo tempo duas variáveis fundamentais: melhores condições climáticas e maior proximidade dos potenciais usuários.

Na época, o grupo técnico, focado em planejamento regional, era composto de cartógrafos, geógrafos, economistas, mais algum curioso. Na época, também, não havia imagens de satélite. Havia a cartografia do Exército, feita por aerofotogrametria, e também registros das estações climáticas. Mesmo rudimentares, eram ferramentas confiáveis.

Lembro bem que havia um dado consensual: por efeito do rio das Antas e do rio Caí, em toda área que ia do então Mato Sanvito – hoje bairro Cidade Nova – até Vila Flores, era inviável o aeroporto, porque a neblina podia surgir a qualquer momento e ser tão espessa a ponto de tirar qualquer visibilidade para pouso e decolagem.

Na ocasião, eram apontados dois locais possíveis. O mais próximo era em São Gotardo de Flores da Cunha, onde, por alguma razão que ninguém me explicou, era (ainda é?) rara a formação de neblina. Um piloto amador, que comparecia no grupo, confirmava: ele decolava o teco-teco debaixo de cerração e, chegando a São Gotardo, o céu estava quase sempre limpo. Mas São Gotardo era excluído como possibilidade porque estava, já, num processo de “conurbação” intenso: era assim que os técnicos explicavam. Sobrava então, como ponto mais adequado, algum lugar na direção dos Campos de Cima da Serra.

A opção por Vila Oliva era já pensada dentro do grupo de estudos, no caso de se pretender que o aeroporto internacional regional atendesse também a região de Gramado e Canela, que, todos sabem, fica mais próxima de Vila Oliva, em linha reta, do que a cidade de Caxias.

Essa proposta conflitava com outra: assim como Caxias do Sul, a região das Hortênsias e também a região dos Vinhedos sonhavam com o aeroporto internacional ao pé de casa. A solução seria, então, a construção de três aeroportos...

Um professor italiano, com quem eu comentei essa dificuldade que tínhamos de pensar e agir em conjunto, me respondeu com um sorriso de quem conhecia muito bem a história: “È come in Italia, ciascuno nel suo campanile”. Traduzindo: é que nem na Itália, cada um debaixo do seu campanário!

Ainda bem que as coisas tomaram o rumo certo, e o aeroporto regional em Vila Oliva parece não sofrer mais contradição.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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