Caxias do Sul 16/04/2024

A catadora de crônicas

Esse gênero literário veio para ficar eternamente, dada a alta qualidade de nossos cronistas brasileiros
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 12/12/2021 às 08:47:00
Foto: Claudia Haupt

Sou apaixonada por crônicas. Ao abrir um jornal, físico ou virtual, vou direto à leitura das crônicas. Em meio a tantas tragédias, elas são como uma brisa leve que sopra em meu rosto.

Esse gênero literário breve, feito para o momento, a ser degustado em minutos, veio para ficar eternamente, dada a alta qualidade literária de nossos cronistas brasileiros – Machado de Assis, Drummond, Clarice Lispector, Rubem Braga, Caio Fernando Abreu, Arnaldo Jabor... e tantos mais, que se inspiram no cotidiano, naquele ínfimo detalhe, num descomum, que só o cronista vê, e nos fala subjetivamente, contando a nós, leitores, ao pé do ouvido o que ele vê, que é feérico, por isso nos emociona. É texto intimista, liberdade o define, é particular. Não importa o quê, mas o como está escrito.

Joaquim Ferreira dos Santos, jornalista e escritor brasileiro, diz que “a crônica não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz literatura também.”

Quanto a mim, hoje percebo que sempre pensei em forma de crônicas, desde que me lembro de ser gente – sim – e hoje – cada vez mais uma catadora de crônicas.

Lembranças do quintal da minha alma são crônicas – a casa dos meus pais onde nasci – casa cheia de gente – pai, mãe, seis irmãos. O “lote” repleto de recantos e encantos: comer figos sentada em um galho da figueira – a grama salpicada de pétalas brancas das pereiras em flor – o churrasco que o pai fazia aos domingos e reunia muitos familiares – a sopa de agnolini da mãe – somente três deles enchiam o prato – enfim, são milhares os presentes do passado. Memorabilia pessoal.

(Foto: Marilia Frosi Galvão)

Talvez, em meus relatos “cronicais”, talvez... os silêncios e o não dito sejam o mais importante, o inconsciente me revela de forma ressignificada e me confesso ao leitor como uma estranha para mim mesma. Me desvelo ao observar o mundo, a natureza, o passar das estações, a vida como ela se apresenta ao abrir a janela pela manhã, os rostos das pessoas que passam, as flores que comprei, o sorriso de alguém, os gerânios que cultivo na sacada, os pintores no andaime do prédio, os três pinheirinhos que estão florescendo (coloquei alguns pinhões na terra) – a Feira do Livro (repleta de crônicas) – uma frase ouvida ao acaso dita por estranhos – a manequim pelada, reluzente, cor de bronze, sentada na poltrona do caminhão de mudanças – o que aprendo nos livros que leio – o que capto nas ruas por onde passo – os jacarandás – aquele tombo em que fiquei estatelada no chão e o vendedor de churros me ajudou a levantar - as cerejeiras – os prédios – e até aquela florzinha minúscula que insiste em brotar entre pedras... enfim, mapeio tudo o que meus olhos conseguem ver e o que me emociona, e – mentalmente – já escrevi milhares de crônicas.

(Foto: Marilia Frosi Galvão)

Sou feita do ambiente em que vivo, da literatura, da arte, dos filmes, e, principalmente do convívio com as pessoas.

Por isso, preciosos para mim foram alguns cronistas próximos, com os quais tive/tenho o privilégio de “cronicar” há anos: Nivaldo Pereira – jornalista e escritor – que, ao longo de oficinas literárias, me contagiou pelo seu entusiasmo e alto-astral e me orientou na seleção de minhas crônicas para o livro “Fagulhas” – para o qual escreveu uma tocante apresentação. Marcos Fernando Kirst – jornalista e escritor – não só pelas encantadoras oficinas literárias, nas quais muito aprendi, como também muito me honrou por confiar em meu critério a curadoria de 1300 crônicas escritas por ele. E, Maria Helena Balen, escritora e cronista - que habita em nós pela sua bela obra. Foi uma grande amiga que a vida me presentou, companheira de oficinas, órbitas literárias, e grande incentivadora. Saudades imensas dos entardeceres no sétimo andar do Edifício Alfred, desses happy hours de muitas risadas, escutas e dicas incríveis de escrita.

Com Nivaldo, Marcos e Maria Helena, aprendi que as crônicas estão dentro e fora de nossa alma. Basta apurar o olhar e permitir que a emoção nos inunde.

Assim, como catadora de crônicas, pincei esta pequena epifania da minha infância, a qual compartilho com os meus leitores e os convido a darem a sua versão de continuidade.

O Casaco Mágico

Quando garotinha, eu acreditava que tão somente os truques saídos das cartolas dos mágicos eram as verdadeiras magias. Mas, oh, não!! Até que tive a confirmação de que o casaco de minha avó, a Mãe Marieta, assim a chamávamos carinhosamente, também era mágico !!!

Casaco mágico? Sim, dizíamos. Casaco mágico. Eu e meus dois irmãos menores – o Fla e o Biba.

Como de hábito, o trio de pequenos aguardava a visita da avó brincando ao redor do fogão a lenha, naquela noite de inverno em que alguns flocos de neve esvoaçavam no ar gélido.

Porém, antes da epifania, apresento a Mãe Marieta. Aproximava-se dos setenta anos, uma figura adorável. Baixinha, cheirava a talco e perfume Regina. Vaidosa – passava batom, rouge e pó de arroz. Os cabelos eram presos em um coque, na nuca, recheado de Bombril. (Como descobrimos esse detalhe é outra história.) Sempre alegre e carinhosa para conosco. E muito bondosa para com todos, costumava oferecer refeições aos pobres.

Bem, essa persona que era a minha avó vestia naquela noite o indefectível casaco de peles. Naquele tempo era normal usar esse tipo de abrigo, uma vez que ainda não se falava em extinção de animais, ou ecologia. Hoje penso se o casaco fora talhado assim comprido, ou se ela, por ser pequenina... Mas em favor dele, além da delícia de abraçar a vó e acariciar a pele dele, tão macia, sempre havia balas nos bolsos e outras guloseimas. Além disso, permanece a dúvida se haveria outros bolsos internos, pois o que saía de dentro espantaria qualquer desavisado. Misterioso para nós. Alegres surpresas.

Imagina só – costelinhas e polentinhas para “brustolar” na chapa quente do fogão. Sssssssccccchhhhh!!! Todos os sentidos se aguçavam. E mesmos que já tivéssemos jantado, sempre apetecia este banquete com o ingrediente amor-de-vó.

Pois então,

Naquela noite,

Diferentemente de outras, não havia nada, nenhuma coisa boa de comer!

Fez-se um silêncio.

Mãe Marieta abriu o casaco e, puft, pulou para fora um filhote, um lindo cãozinho!

Marilia Frosi Galvão, professora, escritora e cronista

mail galvao.marilia@hotmail.com