Caxias do Sul 03/05/2024

Outra pandemia parou Caxias mais de um século atrás

Não é a primeira vez que os habitantes da cidade precisam adotar medidas extremas para combater doença provocada por micro-organismo letal
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 18/03/2020 às 09:36:49
Outra pandemia parou Caxias mais de um século atrás
Chegada do trem a Caxias, em 1910, integrou a cidade ao resto do país e pode ter servido de porta de acesso à doença em 1918
Foto: DOMINGOS MANCUSSO, ACERVO DE RENAN CARLOS MANCUSSO

POR: Marcos Fernando Kirst

Esta não é a primeira vez que os habitantes de Caxias do Sul vivenciam um quadro desolador decorrente de um cotidiano afetado pelo temor do contágio por um micro-organismo perigoso e letal. O silêncio ocupando os espaços das ruas e calçadas tradicionalmente barulhentas e agitadas no centro urbano do município, os estabelecimentos vazios ou de portas fechadas, o clima de ansiedade em suspensão, os olhares desconfiados a espiar pelas frestas das janelas, o ecoar solitário dos passos ou do motor de alguém que ousa, por necessidade, quebrar momentaneamente a regra tácita de permanecer dentro de casa, as orações em busca de uma solução vinda do alto, a torcida pela vitória por meio da ciência e das ações conjugadas, a expectativa pelo que vai acontecer e a esperança de que a desconstrução da normalidade cesse o mais breve possível, são elementos que também tingiram o cotidiano dos caxienses pouco mais de um século atrás.

O ano era o de 1918, quando os limites do território caxiense começaram a ser atingidos pelos efeitos da pandemia mundial que entraria para a história como “A Gripe Espanhola”. O mal aportou em território brasileiro em outubro daquele ano e rapidamente se espalhou por todo o país, vindo a alterar o cotidiano da “Pérola das Colônias” enquanto os caxienses até então só se preocupavam em acompanhar pelas páginas dos jornais o desenrolar do final da Grande Guerra na Europa, que mais tarde seria alcunhada de Primeira Guerra Mundial. A imprensa da época exercitou com esmero a criatividade ao tentar apelidar a doença e o vírus. Antes de se estabelecer como “denominação oficial”, a “Gripe Espanhola” chegou a ser chamada de “Influenza Espanhola”, “La Hespanhola”, ou, ainda “La Dansarina”.

O termo “influenza” derivou da expressão italiana “influenza di freddo”, ou seja, “influência do frio” (na língua inglesa, optou-se por uma derivação reducionista para designar a moléstia: “flu”). O apelido “La Dansarina” surgiu em Portugal, evocando a figura característica de uma bailarina de flamenco como imagem para evocar a doença que ganhava o mundo a partir do país ibérico vizinho.

A GRIPE ESPANHOLA NA SERRA GAÚCHA

Um quadro detalhado da situação na Serra Gaúcha na época é apresentado em algumas páginas do livro “O Ocaso da Colombina: A Breve e Poética Vida de Vivita Cartier”, biografia (de minha autoria) da poeta porto-alegrense que foi a Criúva tentar se curar da tuberculose no início do século passado e que vivenciou, naquela época, pela imprensa, o caos decorrente da pandemia na região da Serra Gaúcha. O livro explicita assim o quadro:

“Mal chegara ao fim o morticínio provocado pelo homem com o final a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) e a natureza decidia punir a humanidade com outro flagelo, que entrou para a História como a maior e mais grave pandemia mundial já registrada, com um bilhão de infectados no mundo (a metade da população da época) e ocasionando cerca de 20 milhões de mortos. Somente no Brasil foram mais de 300 mil óbitos, ceifando oficialmente as vidas de 3.971 pessoas em todo o Rio Grande do Sul (1.316 somente em Porto Alegre), de outubro até 31 de dezembro de 1918 (período em que a doença agiu no Brasil), fora os casos não registrados.

Conhecida entre a população como “a peste”, a Gripe Espanhola causou mortes também em Caxias do Sul, apesar de os números não serem oficialmente conhecidos. Relatos remanescentes de quem viveu a época dão conta de que os cadáveres eram recolhidos pela municipalidade à noite, a fim de que a visão dos mortos não aumentasse o pânico entre a população. As famílias eram orientadas a deixar os seus mortos em frente às casas, para serem recolhidos pelos funcionários públicos designados para a tarefa, e sepultados. A edição do jornal caxiense “O Brazil”, de 4 de novembro de 1918, alertava sobre a “Influenza Espanhola” que estava chegando ao Brasil (a doença aportou no Rio de Janeiro oficialmente em meados de setembro, trazida por passageiros infectados a bordo de navios provenientes da Europa).

O mal já havia atingido Porto Alegre em outubro, onde começava a causar mortes, e também chegara a Caxias via trem, por dois passageiros infectados. A publicação trazia orientações sanitárias sobre como proceder para evitar a moléstia, em surgindo os primeiros sintomas. A edição de 11 de novembro informava o registro de cem casos na Serra, mas ainda todos “benignos”, ou seja, sem terem conduzido os pacientes a óbito. Os serranos supunham-se protegidos dos efeitos trágicos da doença devido a uma forte crença nos poderes milagrosos, quase sobrenaturais, do afamado e aclamado “bom clima” de que imaginavam ser a região dotada. Tanto é que o próprio periódico, alguns parágrafos adiante, atestava: “As boas condições do nosso clima, desfavoráveis ao desenvolvimento do germe patológico da doença, nos tem protegido contra os estragos da enfermidade”.

Mas o quadro muda radicalmente já em 7 de dezembro, quando a alegada “benignidade” se esvai e as diversas mortes começam a se somar, a despeito das “boas condições do clima”. Atribuindo a reviravolta detectada na letalidade da doença a inexplicáveis “mudanças climáticas” (que então, supõe-se, abriram as portas para o recrudescimento da doença na região, até então ilusoriamente blindada), o mesmo jornal contabiliza ao menos 800 infectados na área urbana. Informa ter havido mortes em Caxias, mas não especifica quantas. O pavor se estabelece entre a população e a comunidade se mobiliza para arrecadar valores e víveres destinados a ajudar os doentes, especialmente os mais pobres. O Livro de Registros de Sepultamentos do Cemitério Público Municipal de Caxias do Sul, referente aos anos de 1909 a 1934, preservado junto ao Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami, aponta uma morte por “influenza” já em 4 de novembro de 1918. Tratava-se de Raimundo da Silva, de 24 anos. Teria Raimundo sido a primeira vítima fatal caxiense da pandemia? “Influenza espanhola”, “febre espanhola”, “influenza”, “gripe pulmonar” e “gripe” seriam as causas registradas das mortes de 31 pessoas desde Raimundo até João Percival dos Santos, de 22 anos, em 1º de agosto de 1919.

Uma das mais conhecidas vítimas fatais da “espanhola” na comunidade caxiense foi Angelina Rovea Perretti (foto), esposa de Domingos Perretti. No Carnaval de 1914, quando ainda solteira, ela fora coroada Rainha das Flores do Clube Juvenil, sendo muito aclamada. Morreu quatro anos depois, deixando viúvo o marido e órfão o filho, Vasco Perretti. A quase totalidade de incidência dos casos, no entanto, ficou restrita ao período entre o início de novembro de 1918 e o começo de janeiro de 1919, ceifando vidas de pessoas de todas as idades (inclusive um bebê de 52 dias e uma criança de 10 anos). Se for levado em conta o número de pessoas que podem ser inseridas nesse cálculo entre aquelas cerca de 50 que, nesse mesmo período, figuram no registro de sepultamentos como tendo morrido “sem assistência médica” (observação cuja incidência recrudesceu significativamente nesse intervalo específico em que a doença esteve ativa e matando em Caxias do Sul), o número aproximado de 31 vítimas da Gripe Espanhola em Caxias, sugerido pelos dados existentes no Livro de Registros de Sepultamentos, pode crescer e chegar a um total de quase uma centena. O suficiente para alterar a rotina da cidade e gerar o pânico que de fato gerou.

Em Porto Alegre, relatos demonstram que o cenário chegou a ser digno daqueles retratados por autores e artistas quando da Peste Negra que atingiu a Europa na Idade Média (no século 14). No auge da mortandade causada pela Gripe Espanhola, as ruas centrais da Capital do Estado estavam vazias; as portas dos estabelecimentos comerciais fechadas; bares e cafés abandonados. Os bondes elétricos não circulavam, os educandários cancelaram as aulas. Não havia entrega de correspondência, registrava-se escassez de alimentos, remédios, lenha, combustível e outros artigos de primeira necessidade. As pessoas se trancavam dentro das casas, um silêncio lúgubre pairava sobre toda a cidade, quebrado de quando em vez pelos sinos das igrejas que anunciavam novas mortes ou pelos passos apressados de algum destemido transeunte que ousava cruzar as calçadas ao ar livre empesteado. Havia pilhas de mortos nas esquinas aguardando transporte para os cemitérios, onde muitos foram enterrados às pressas em valas comuns, sem identificação. Coveiros morriam em serviço e eram substituídos no ofício dos enterros por presidiários obrigados a desempenhar o perigoso trabalho. Os jornais traziam as listas dos mortos e muitos, desesperados, cometeram suicídio.

Apesar de grave, a situação não chegou a esse ponto em Caxias do Sul ao longo daqueles três terríveis meses do final de 1918.”