Caxias do Sul 25/04/2024

O dia em que o mundo parou e as redações pegaram fogo

Há 20 anos, os atentados de 11 de setembro chocavam a população global e subvertiam as pautas jornalísticas em todo o planeta
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 11/09/2021 às 07:05:04
O dia em que o mundo parou e as redações pegaram fogo
Foto: DIVULGAÇÃO

Por MARCOS FERNANDO KIRST

Apresentava-se como tipicamente pré-primaveril o amanhecer daquela terça-feira, 11 de setembro de 2001, em Caxias do Sul. Tempo firme, temperatura amena, céu com nuvens esparsas.

Na condição de editor das páginas de matérias internacionais do jornal “Pioneiro”, de Caxias do Sul (intitulávamos a editoria como “Mundo”), e morador das proximidades da sede da empresa, localizada, na época, no bairro Santa Catarina, na Rua Jacob Luchese, eu já estava banhado, barbeado, vestido e terminava a xícara de café, preparando-me para ir ao trabalho, quando o colega e vizinho Daniel Corrêa, editor de Polícia, bateu em minha porta, esbaforido:

- Kirst, liga a televisão, homem! Rápido! Tá acontecendo alguma coisa em Nova York!

Liguei a tevê da sala e deparei com a impactante imagem (a primeira de muitas que se seguiriam naquele longo dia) do alto da torre norte do World Trade Center em chamas, sendo transmitida ao vivo pelas televisões mundiais em cadeia. Sem entender direito o que estava acontecendo (eu e todo o planeta, naqueles momentos históricos), desabalei para a redação do jornal, já sabendo que deveria garantir pelo menos uma boa página para a editoria de Mundo na edição diária que começaríamos a preparar, como todos os dias.

Nossa reunião diária de pauta, com os editores de área, naquela época, acontecia todas as manhãs às 11h. Cheguei e as tevês da redação já estavam ligadas e sintonizadas no inesperado evento, atraindo as atenções dos ainda poucos jornalistas presentes ao jornal que decolava para mais uma edição. Imediatamente interfonei para a Rose (Roselei Dal Magro), do Departamento Comercial, colega responsável pela preparação do “boneco”, ou seja, o espelho das páginas da edição, com as posições dos anúncios e o número de páginas destinadas naquele dia a cada editoria, e solicitei que deixasse “limpa”, ou seja, sem anúncios, a página de Mundo, porque eu teria matéria importante (ainda nem imaginava o quanto).

Também igualmente esbaforido chegou à redação o colega Felipe Boff, então no cargo de editor de Produção, responsável naquele dia pelo comando da redação em função da excepcional ausência do editor-chefe Roberto Nielsen, envolvido em compromissos profissionais fora da cidade. Mal tivemos tempo de trocar algumas palavras quando a tevê testemunhou a colisão do segundo avião contra a torre sul do World Trade Center, às 10h03 (horário de Brasília, uma hora mais tarde em relação ao fuso de Nova York). Felipe, eu e o mundo, naquele instante, percebíamos que o até então acidente não era um acidente. Era algo bem pior, dimensionado somente pelo tamanho de nosso espanto, de nosso mutismo, de nossos olhos arregalados, da incredulidade que se abate sobre o nosso espírito quando vivenciamos algo que nossa mente não consegue enquadrar.

“Ataque terrorista” foi o termo que passou a pautar todas as pessoas, jornalistas e veículos de comunicação a partir daquele instante, percepção que seria confirmada nas horas subsequentes com as impactantes e traumáticas notícias do ataque ao Pentágono; da queda de um quarto avião na Pensilvânia, cujos sequestradores foram detidos e dominados pelos passageiros; pelos desabamentos das duas torres em chamas; pelo avolumar-se do número de vítimas fatais; pelo pânico dos nova-iorquinos; pelas reações internacionais; pelo medo, pelo horror, pela insegurança que se assentaram em todas as gentes frente ao que estava acontecendo e ao que poderia estar por vir.

Quando o segundo avião atingiu a segunda torre, voltei a contatar a Rose e solicitei que reservasse não uma, mas duas páginas limpas para a editoria de Mundo. Eu ainda não antevia que, na verdade, logo mais estaríamos revertendo toda a pauta prevista para aquela até então tranquila e normal terça-feira, gerando uma edição especial histórica com 16 das 32 páginas destinadas exclusivamente para a cobertura daqueles fatos, que impregnariam a memória coletiva de todo o planeta e transformariam a face do mundo.

Como acontece nas redações de veículos de imprensa quando um fato se impõe a todos os demais, rapidamente reorganizamos toda a estrutura das páginas então previstas, realocando editorias para as seções finais e criando uma “força-tarefa” de editores e repórteres para atender às demandas que a editoria de Mundo pautava. Em paralelo à edição do dia seguinte que preparávamos, conseguimos colocar nas bancas e nas ruas ainda no final da tarde de 11 de setembro um cartaz especial chamando para a edição completa que estávamos preparando sobre o episódio.

Note-se que estávamos em 2001 e a internet ainda não possuía a agilidade e os recursos que conhecemos hoje (e nem os ainda incipientes telefones celulares), sendo as redações alimentadas prioritariamente pelo material vindo das agências de notícias assinadas, pela televisão e pelos relatos de testemunhas (conseguimos contatar vários caxienses residentes de Nova York e dos Estados Unidos para darem seus testemunhos por telefone sobre o que viam e viviam naqueles momentos terríveis).

Colegas de outras editorias uniram-se a mim naquele esforço conjunto e o histórico Expediente daquele também histórico número do jornal Pioneiro traz, na edição, Marcos Fernando Kirst, Felipe Boff, Cléver Moreira, Adriana da Silva e Dhynarte de Borba e Albuquerque. Nos textos, além dos editores, também os colegas repórteres Anahi Fros e Fabiano Finco, bem como o material vindo da Agência RBS e da Agência Estado. A edição fotográfica esteve a cargo de Gilmar Gomes e Ricardo Wolffenbüttel e a diagramação ficou por conta de Andreia Fontana e José Deon.

A capa da edição histórica trazia como manchete, em letras garrafais e maiúsculas, nas cores da bandeira dos Estados Unidos, a frase TRAGÉDIA AMERICANA. A foto escolhida (entre tantas emblemáticas que aterrissaram na redação) estampava um solitário bombeiro portando na mão um pequeno extintor de incêndio e observando, atônito e impotente, o tamanho da destruição originária do desabamento das torres. A legenda dizia “Império vulnerável”.

Capa da edição histórica de 11 de setembro de 2001

Os atentados e suas consequências deixaram o mundo apavorado frente ao escancarar, mais uma vez na História, do fato de que parte da humanidade seguia optando pela violência, pelo discurso do ódio, pelo apelo às armas e pela intolerância como instrumentos para administrar as diferenças, independentemente das terríveis e trágicas consequências advindas dessa alternativa.

O que essas duas décadas de distanciamento daquela data histórica mostram, infelizmente, é que essas mesmas parcelas da humanidade seguem fazendo questão de não aprender com a História, e insistem em seguir lançando mão desses mesmos instrumentos de ódio e de violência para a solução (e para o reabastecimento constante) dos conflitos. Até quando?...

yesyesyes

Não me lembro em que hora demos por encerrada a edição, afinal, os fatos desencontrados não paravam de chegar e mesmo assim era preciso encaminhar as páginas ao setor industrial, para a impressão. Sabíamos, no entanto, que aquilo era a ponta do iceberg de uma cobertura que recém estava começando e que pautaria o noticiário e as vidas no planeta pelos próximos meses (hoje sabemos que transformou o mundo em vários aspectos).

Em algum momento do início da madrugada cheguei em casa, exausto, atordoado e temendo pelo futuro, pois uma guerra de proporções mundiais, naquele momento, se colocava como uma possibilidade concreta em função da reação dos Estados Unidos e seus aliados contra pelo menos um inimigo detectado de imediato: o regime Talibã que governava o Afeganistão e abrigava células terroristas antiocidentais, como a Al-Qaeda de Osama Bin Laden.

Achei que desabaria de imediato no sofá da sala, sem forças para subir as escadas que conduziam ao meu quarto no segundo andar, mas outra surpresa me aguardava dentro de meu próprio lar. Lucy, minha gatinha siamesa de pelagem branca e olhos azuis, indignada com minha demora em voltar para casa sem avisar e nem dar satisfações, promovera seu próprio ataque terrorista talibã interno e tratara de externar sua frustração destruindo todos os vasos com plantas que minha então namorada (hoje esposa) e também jornalista Silvana Toazza tinha enfileirado nos degraus da escada. Havia terra, cacos de vaso, pedregulhos ornamentais e plantas destruídas por toda a sala, sobre o tapete, sobre os aparelhos eletrônicos, o sofá, as poltronas...

“Quando não cuidamos das demandas internas, abrimos as portas para as manifestações do terror, não é mesmo, Bush?”, pensei eu, encontrando no então presidente norte-americano o único interlocutor imaginário capaz de ter empatia e compreensão pelo quadro que eu enfrentava naquele momento. Impotente e exausto, enchi de ração o potinho de Lucy, afaguei sua cabeça ronronante, subi as escadas deixando para amanhã a faxina e fui dormir, sem imaginar que tipo de mundo encontraria ao despertar a partir de 12 de setembro de 2001. O resto, é História.

Tanto a edição histórica quanto as demais, na sequência da cobertura, podem ser conferidas acessando o acervo digital dos jornais caxienses no site da Câmara de Vereadores de Caxias do Sul, clicando no link AQUI