Caxias do Sul 25/04/2024

Uma história dos inícios de Caxias

Retrato de um destacado personagem real da imigração que inspirou a criação de personagem marcante na ficção
Produzido por José Clemente Pozenato, 10/03/2022 às 10:31:50
Foto: Marcos Fernando Kirst

Uma figura relevante dos inícios da história de Caxias foi Francisco Paglioli. Ele foi pai de Elyseu Paglioli, que se tornaria conhecido e famoso como neurocirurgião e como reitor da Ufrgs, entre 1952 e 1964.

Uma cópia do caderno de lembranças escrito por Francisco Paglioli, depositado no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, me chegou às mãos. Alguns traços de sua história eu usei como material para construir, ou reconstruir, o cenário de Caxias no meu romance A Cocanha.

O personagem Domênico também deve a ele a habilidade musical... Seu sobrenome me era familiar desde menino, porque os Paglioli viveram em São Francisco de Paula, como eu. O caderno escrito por Francisco me esclareceu como é que puseram raízes lá.

Francisco Paglioli chegou ao Campo dos Bugres em 1877, com dez anos de idade. Assim ele relata a viagem, feita com o pai Domênico e a mãe Rosa Fiametti:

“Partimos da Itália com destino ao Brasil, em 1877. Chegando ao Rio de Janeiro, não foi permitido desembarcar, pois estava grassando naquela cidade a febre amarela. Do navio passamos para um outro que nos conduziu até Porto Alegre. Aí chegados, não pudemos desembarcar, por estarem as casas destinadas aos emigrantes completamente cheias dos mesmos.

Do vapor, passamos em um vaporzinho que nos transportou a S. Sebastião do Caí, então conhecido como Porto Guimarães. Chegados, encontramos um tropeiro, João Sutil, que trazia uns animais arreados com cangalhas e cestos. Em um dos ditos cestos eu fui colocado, e no outro uma menina, mais ou menos da minha idade.

Meu bom pai foi encarregado de puxar pelas rédeas a mula, tendo o cuidado de não esbarrar em alguma árvore, pois que não havia estrada e sim uma picada. Os adultos, com exceção dos impossibilitados, tinham que marchar a pé, e as mulas carregavam as malas”.

Pode haver registro mais preciso e detalhado?

Com 13 anos de idade, Francisco foi trabalhar em uma casa comercial, de onde foi retirado pelos pais quando contou a eles o sistema que o negociante usava para pesar e medir. Foi sacristão e aprendeu latim com o padre. Teve como professores Abramo Pezzi e José Domingos de Almeida. Em seguida, entrou na oficina de sapateiro de Angelo Chittolina, e principiou a estudar música.

Tornou-se músico de banda e chegou a tocar em Porto Alegre, em um carnaval. O mestre da banda era um pedreiro, Agostinho Curtolo, e ela “era composta, a maior parte, de agricultores”. A banda se desfez e, numa reunião, Francisco foi proclamado maestro, encarregado de reorganizá-la:

“Com todo amor que tinha pela música, aceitei, e passei a estudar e a ensinar o pouco que sabia. Convidei diversos rapazes que queriam aprender e fiz-lhes esta proposta: eu não cobrarei pelo ensino, mas devem apresentar-se com instrumento desde a primeira lição”.

Depois de um ano de trabalho, já fazia bonito com seus músicos na Praça Dante. Em 1891, foi tocar na Exposição Estadual em Porto Alegre e, “como recompensa dos meus esforços, os músicos me presentearam com um bonito pistão novo”.

Já casado, a família aumentando, recebeu convite do Doutor Montauri para se estabelecer em Alfredo Chaves e organizar lá uma banda de música. Preferiu ficar em Caxias e abrir casa de comércio. Na Revolução de 1893, ficou no meio do tiroteio de maragatos e pica-paus, que “saquearam muito, mas eu não sofri, pois todos me queriam bem”.

Em 1902, foi criado o município de São Francisco de Paula, e Francisco Paglioli foi convidado pelos chefes políticos de lá para ir organizar uma banda. Pelo visto, as bandas de música eram prioridade para as administrações públicas. Dessa vez, aceitou o convite e se mudou com a família.

Em São Chico, organizou duas bandas, lecionou piano e violino para meninos, criou um coro de meninas “e escrevi diversas músicas, sacras e profanas, inclusive uma missa que foi cantada por ocasião das minhas bodas de ouro”.

Concluiu suas memórias, escritas em 1942, com estas três anotações: “não tenho inimigos, todos me querem bem, sou feliz”. Sem dúvida, teve tudo para inspirar um personagem de romance. E o que está aqui é apenas uma amostra!...

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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