Caxias do Sul 18/05/2024

Surpresas da História

Pesquisas revelam a verdadeira faceta da colonização de Santa Lúcia do Piaí
Produzido por José Clemente Pozenato, 28/07/2022 às 10:05:21
Foto: Marcos Fernando Kirst

Na década de 1980, foi realizado na UCS um projeto, que contou com o apoio do Ministério da Educação, com o título de Educação no Meio Rural. Seu objetivo era estimular as escolas do ensino fundamental a buscar as raízes culturais de sua comunidade. O local escolhido para implantar o projeto foi o distrito de Santa Lúcia do Piaí, de Caxias do Sul.

No total, catorze comunidades do distrito contribuíram com narrativas, em textos produzidos pelos professores das escolas desse meio rural, com a participação dos alunos, que auxiliaram, principalmente, na identificação de pessoas a serem entrevistadas.

Para surpresa dos participantes do processo, incluídos aí sete professores da UCS, a imagem de que Santa Lúcia do Piaí tinha uma história totalmente vinculada à imigração italiana se desfez. As pesquisas, que buscaram informações em livros-tombo, arquivos e obras históricas, e as narrativas dos entrevistados, apontavam para outro cenário.

Na realidade, o distrito, situado na confluência de três biomas diferentes – os Campos de Cima da Serra, a Mata de Araucárias e a Floresta Subtropical da encosta do rio Caí –, teve habitantes de várias procedências, que deixaram aí suas marcas culturais.

Os primeiros habitantes foram os indígenas Caáguas e Ibianguaras, que deram nome ao rio Piaí, afluente do rio Caí, que passa pela região.

No século XVII, estiveram na região os jesuítas espanhóis das Missões, que expandiam a produção de gado nos Campos da Vacaria. Um deles foi o padre Cristóbal de Mendoza que, em 1635, morreu num ataque dos Ibianguaras, à beira de um córrego que até hoje tem o nome de Água Azul. Segundo a tradição, a água teria ficado azul porque o corpo do padre ali permaneceu por vinte dias até ser encontrado. Outra versão é a de que os índios puseram na água o coração do padre. O riacho ganhou então fama de ser uma água milagrosa para a cura de várias enfermidades.

Nos anos seguintes, houve incursão dos bandeirantes, sob a chefia de Raposo Tavares, que levou índios cativos dali para São Paulo: a sua passagem ficou também marcada com a designação de um local até hoje chamado de Zona Raposo, junto à Ponte do Raposo (que também tem uma história que merece ser lembrada...).

Veio a seguir a ocupação lusa, no século XVIII, a partir do Tratado de Madri e o desmanche das Missões guaraníticas. Toda a região passou para as mãos de donos de sesmarias, vindos de Portugal e dos Açores. O nome mais fixado na memória coletiva foi o da família Soares, sendo que um deles, chamado “Sinhô Grande”, foi proprietário de vastas áreas da região. Ao mesmo tempo, ocorreu o “ciclo do tropeirismo”, que encontrou, ao longo do rio Piaí, um corredor de passagem.

A fase seguinte ocorreu com a chegada dos imigrantes alemães, por volta de 1840. Estes permaneceram nas margens do Rio Caí, na localidade de Santo Antônio e vizinhanças. A maioria deles provinha das colônias alemãs dos vales do rio dos Sinos e do rio Caí.

Por fim, chegaram os imigrantes italianos. Alguns deles adquiriram terras demarcadas pelo governo e outros compraram áreas dos donos de sesmarias. Estes últimos instalaram as serrarias que deram início ao chamado “ciclo da madeira”, que dizimou as araucárias e outras “árvores de corte” das matas. Ao final do século chegaram também algumas famílias de poloneses, completando assim o caldeamento cultural na região.

A pesquisa levada adiante pelas escolas investigou os itens: habitação, alimentação, vestuário, comunicação e transportes, trabalhos dos homens, trabalhos das mulheres, comércio, formas de indústria, medicina caseira, educação, religião, vida social, jogos e festas, crenças, canções, línguas faladas e assim por diante.

O material recolhido mostrou, principalmente, como os usos e costumes dos sucessivos povoadores deixaram marcas reconhecíveis dentro do caldeamento consolidado ao longo do tempo. Santa Lúcia do Piaí é uma miniatura do processo cultural havido no Rio Grande do Sul.

Observação.: O livro que relata essa experiência foi publicado em 1986 pela EDUCS, com o título de História e Cultura de um Povo – Santa Lúcia do Piaí. E em março deste ano foi inaugurado, na sede do distrito o Centro de Memória e História, numa iniciativa dos moradores locais, reconhecido pelo Instituto Brasileiro de Museus, do Governo federal. Nele, o visitante pode ver desde objetos indígenas até malas dos imigrantes italianos.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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