Caxias do Sul 18/04/2024

Personagens italianos na pauliceia desvairada

As figuras de italianos tornam-se mais amiudadas na literatura brasileira do século vinte
Produzido por José Clemente Pozenato, 15/04/2021 às 08:31:42
Foto: Marcos Fernando Kirst

É em São Paulo, para onde convergiu, segundo estimativas, cerca de setenta por cento da imigração italiana no Brasil, que naturalmente essa presença na literatura se fará mais frequente e mais intensa.

Além disso, com a Semana de Arte Moderna de 1922, São Paulo se empenhou em tirar do Rio de Janeiro o título de capital da literatura brasileira. O livro Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade, seria o estandarte dessa revolução que não era apenas estética, era também de política literária.

Sem contar outras menos significativas, personagens italianas vão aparecer em obras de Mário de Andrade, de Antônio de Alcântara Machado, de Plínio Salgado e vai tomar corpo em Juó Bananére.

Juó Bananére é um pseudônimo de Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, transformado em personagem, numa mistura de italiano e de caipira. O maior sucesso de Marcondes Machado – ou Juó Bananére – foi o livro La Divina Increnca (1915), uma paródia, no italiano macarrônico criado pelo autor, de passagens da Divina Comédia de Dante Alighieri. Juó Bananére teve também grande divulgação em revistas e jornais da época graças à sua caricatura criada por Voltolino (pseudônimo de Lemmo Lemmi).

Mário de Andrade, em Macunaíma (1928), criou um gigante comedor de gente, de nome Venceslau Pietro Pietra. Ele mora no bairro do Pacaembu, joga truco e morre depois de uma pantagruélica macarronada. Esse perfil do italiano devorador (das fazendas de café e do capital urbano!) é uma imagem também nada simpática. Nos Contos de Belazarte (1934), comparecem também diversas personagens italianas (Carmela, Nardelli etc.) mas apenas, digamos assim, como elementos para compor o ambiente urbano paulista. De um modo geral, Mário de Andrade não tem empatia com seus personagens italianos.

Bem diferente é o caso de Antônio de Alcântara Machado, nos contos de Brás, Bexiga e Barra Funda (1927). O próprio título do livro enumera bairros de imigrantes italianos de São Paulo. É ele o escritor que mais claramente testemunha a força da imigração italiana no quadro urbano paulista, como um elemento definidor de seu perfil. É evidente também a simpatia humana com que lida com seus personagens. Quem não se lembra da emoção do conto “Gaetaninho”, o garoto atropelado pelo bonde? Esse autor não cria tipos. Faz uma espécie de documentário ficcional do imigrante italiano em São Paulo.

O Estrangeiro (1926), de Plínio Salgado, tem outra ambição. Embora o autor também queira fazer um registro da realidade paulista, em que o imigrante italiano é um componente fundamental, ele é talvez o primeiro a introduzir, na ficção, o mito do italiano bem sucedido, que será recorrente, mais tarde, nas peças de Jorge Andrade: em Os Ossos do Barão (1963) um imigrante siciliano, que vai substituir mão de obra escrava numa fazenda paulista, passa para trás um barão do café...

Em O Estrangeiro, Carmine Mondolfi e sua mulher Concetta saem da pobreza para uma bela conta bancária e uma fazenda de café, em contraposição à decadência dos latifundiários. Mas o romance é também um panfleto contra o “espírito de italianidade” defendido pela sociedade Dante Alighieri e, portanto, uma defesa da integração do imigrante italiano na nacionalidade brasileira. O “estrangeiro” deve tornar-se um “nacional”, culturalmente adaptado, sabendo que foi o almirante português Pedro Álvares Cabral quem descobriu o Brasil, e não Américo Vespucci.

O padre Carlo Porrini publicaria em 1936, também em São Paulo, o romance Masticapolenta, escrito em italiano, cuja ação se passa num país chamado “Cuccagna”: “paese dove sempre se ride e senza pagar sempre se magna!” (país onde sempre se dá risada e sempre se come sem pagar!).

Depois desses, é quase incontável a presença de italianos nos romances de Hernani Donato e de Marcos Rey (pseudônimo de Edmundo Donato). Estão presentes ainda em Autran Dourado, em Pellegrini Jr, em Ary Quintella, em Zélia Gattai, entre outros, compondo um espectro bem amplo: são anarquistas, arrivistas, contrabandistas, artistas de rua, boêmios, contestadores, num processo progressivo de integração e de ascensão social.

Também é verdade que a ficção paulista consagrou a figura do italiano falastrão e metido a esperto, figura que migrou depois para o teatro, para a novela de rádio e, mais tarde, para a novela de televisão. Todos puderam apreciar esse estereótipo na novela Terra Nostra, exibida como “novela das oito”, entre 1999 e 2000, com mais de duzentos capítulos.

Para dar uma ideia da força do estereótipo paulista, vou citar um episódio.

O ator Alexandre Paternost (em pé) em cena no filme “O Quatrilho” (contracenando com José Lewgoy), em que estudou a fundo o contido gestual típico dos colonos italianos

Quando foi lançado o filme O Quatrilho, dirigido por Fábio Barreto, um crítico de São Paulo escreveu que o desempenho do personagem Angelo Gardone foi muito fraco: ele não gesticula, não grita, vê-se que o ator não se sente à vontade em cena. Etc, etc...

Acompanhei a pré-produção do filme, com os atores circulando pelas colônias do interior de Caxias do Sul e de Flores da Cunha, para observar o jeito de ser das pessoas. E percebi que Alexandre Paternost (o ator que fez o papel de Angelo Gardone) procurou copiar os gestos contidos de nossos colonos: ombros encolhidos, mãos nos bolsos, olhar baixo. Isto é, fez um primor de desempenho realista como ator. Mas para os paulistas ele devia gritar, gesticular, fazer estardalhaço, para ter jeito de personagem italiano!

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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