Caxias do Sul 06/05/2024

O urubu da crônica

Personagem alado de texto famoso de mestre literário inspira a pena de escritor serrano
Produzido por Paulo Damin, 18/07/2023 às 09:19:49
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Acaba de pousar na sacada do prédio em frente. Está em cima do morro mais alto do bairro. Está de olho.

Só o vejo porque é gordo e preto. Contrasta com a esquálida luz da tarde serrana. Mas combinam, o pássaro e o cenário: estão só esperando.

Tenho visto muito urubu, nos últimos tempos. Nos últimos tempos: bem coisa de urubu. Aquele ali eu batizei de Rubem Braga.

“Eu quisera ser um passarinho. Não, um passarinho, não. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera ser um urubu”, escreveu ele numa famosa crônica, aos 22 anos.

No auge da juventude, ele já se chamava de “velho”. Coisa de capricorniano. Coisa de arrogante. Que é coisa de capricorniano.

Ou coisa de quem teve infância. Uma infância bem vivida faz isso com as pessoas. Ficam seguras. Ficam querendo as coisas boas da vida, como escrever crônica, em vez de romance; como ser passarinho, em vez de conde.

“A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde. Não amo os condes. Também não amo os industriais. Que eu amo? Pierina e pouco mais. Pierina e a vida, duas coisas que se confundem hoje, e amanhã mais se confundirão na morte”.

Os condes morreram, os industriais morrem todo dia, Pierina virou personagem do Pozenato, só não morreu o Rubem Braga, que continua sentado na sacada do prédio em frente.

Chegaí, Rubinho, vem tomar um mate.

Mas ele está com a cabeça em Paris. Nos tempos em que os jornalistas iam ver guerras e escreviam sobre mulheres. Escreviam, os jornalistas, e eram pagos para isso. Ah, Copacabana. Agora ele fica ali, olhando a avenida. Esperando o pulo do gato sob as rodas dos automóveis de Caxias. Assim como ele ficava lá no terraço dele, onde criava passarinho, planta e pança.

Quer ver? Daqui a pouco vai vir a – veio. Tali a dona da sacada onde pousou o urubu. Tenta enxotá-lo com uma vassoura. Ele pula pra cá, ela pula pra lá, resistem. Ela enjoa, atira a vassoura nele e saem voando: a vassoura prum lado, Rubem Braga pro outro.

Voa, Rubem, voa, voa. Conquista o mau humor serrano com teu sereno mau agouro. É o fim de um século, é o fim de uma profissão: é o fim de uma literatura.

São 110 anos de Rubem Braga, em 2023. Dia 31 de julho, na Órbita Literária, vamos continuar falando sobre o urubu da crônica, na Livraria e Café do Arco da Velha (Dr. Montaury, 1570), às 20h. Pode vir vestido normalmente. Ninguém mais acredita em pompas de condes ou cronistas.

Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.

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