Caxias do Sul 07/05/2024

'O TIGRE BRANCO' é retrato mordaz da sociedade indiana

Narrativa do jovem Barlram escancara diferenças brutais entre as castas da Índia contemporânea
Produzido por Eulália Isabel Coelho, 31/01/2021 às 08:58:24
Foto: LUIZ CARLOS ERBES

Por Eulália Isabel Coelho

“Eat or get eaten up” (Devore ou seja devorado)

Essa epígrafe, que consta no cartaz de O Tigre Branco (Netflix, 2021), é suficiente para nos fisgar a atenção. De algum modo é também referência velada ao “Decifra-me ou devoro-te”, enigma da Esfinge de Tebas, que observava os viajantes e lhes propunha um jogo de adivinhação cuja resposta errada os levaria à morte.

O filme, dirigido por Ramin Bahrani, americano de origem iraniana, coloca o protagonista indiano Balram (Adarsh Gourav) em busca de resolver em si mesmo esse mistério metafórico, para finalmente obter respostas de como ascender socialmente na arcaica divisão de castas da Índia. Não se trata, contudo, de filosofia, mas de sobrevivência.

Baseado no premiado romance do escritor indo-australiano Aravind Adiga, a obra retrata as relações de servidão dos empregados e a vocação corrupta de seus patrões. O desejo de esquivar-se da pobreza para viver minimamente confortável persegue Balram, motorista subserviente de Ashok (Rajkummar Rao) e de sua esposa, Pinky Madan (Priyanka Chopra).

A história de Balram é narrada por ele mesmo, trazendo assim o olhar subjetivo do personagem com idas e vindas temporais que lançam luz sobre como ele conseguiu abandonar a base da pirâmide social. Para isso, ele precisa devorar a própria esfinge como resposta. Ela é aqui representada pelo capitalismo que contrasta com uma Índia miserável, aquela de onde Balram é originário.

Balram, em seu vilarejo miserável

O pária social é constantemente humilhado pelos parentes de seus patrões. Ora tratado como “da família” ou “como amigo”, é repetidamente insultado apesar de totalmente servil. Mas o tom do filme não cai no melodrama, ao contrário, a narrativa é de um tom mordaz, cínico, que carrega em si mesmo a face do jovem Balram, cujo sorriso franco é porta de entrada ao universo cáustico da elite indiana.

O conteúdo social, político e cultural da obra faz lembrar o excepcional Parasita, do sul-coreano Bong Joon- Ho, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2020. O filme tem sido denominado pela mídia global como O Parasita indiano, por semelhança na temática miséria versus abundância. Se há diálogo entre os dois filmes é porque ambos retratam de modo chocante esse contraponto. A malandragem em O Parasita é vista tardiamente em O Tigre Branco, uma vez que Balram demora a tomar a decisão crucial de sua vida: vencer a qualquer custo.

Motorista e seus patrões da elite indiana

Em O Tigre Branco, o protagonista é questionador de sua condição e não apenas um pária em busca de riqueza. Os ultrajes repetidos são “engolidos” por ele com sorriso sempre solícito. Sua ambição é subreptícia até o momento da autorrevelação sobre seu papel no mundo dos detentores dos meios de produção. Ele quer mais. Ele terá mais, pois está decidido a virar seu destino do avesso.

Somente ao compreender os meandros corruptos do capitalismo é que Balram terá a resposta que precisa. Ele não será engolido pela esfinge, como já dito anteriormente, ele é que irá devorá-la a partir de um gesto definitivo, de uma ação sem retorno que justificará sua libertação e a construção de uma vida de sucesso.

A imagem vencedora do jovem indiano

Em cena com Pinky Madan (Priyanka Chopra)

Balram é o que preconizou um professor em sua infância, um tigre branco, animal raro que contrasta com seus pares por sua pelagem e elegância. O protagonista, ao compreender a metáfora do mestre, percebe que seu lugar é fora do núcleo de indigência no qual vive em condições insalubres, como outros motoristas.

Balram tem, desde criança, o sonho de libertar-se da miserabilidade de seu vilarejo, denominado por ele de “galinheiro”. Ali viveu com sua família numerosa, rigidamente controlada pela avó, cujas decisões são incontestáveis (até que ele decida dar um basta). Trabalhando em regime de submissão, Balram deve ainda enviar parte de seu salário à avó, cuja tirania reflete outro aspecto da sociedade indiana. O caráter secular de dominação hierárquica familiar.

Em sua busca da decifração esfíngica, há um momento em que Balram se pergunta: “Odiamos nossos patrões sob uma fachada de amor ou os amamos sob uma fachada de ódio?”. A questão é intrínseca à sua condição servil. À sua inconformidade em ser também um joguete nas mãos dessa família perversa em seu cerne. Por isso, ficamos atentos ao questionamento do protagonista, pois é ali que está a chave para abrir as portas do “galinheiro”, deixando para trás a penúria e a servidão.

Assista ao trailer AQUI

FICHA TÉCNICA

O Tigre Branco (The White Tiger, Índia, 2021)
Direção: Ramin Bahrani
Roteiro: Ramin Bahrani, Aravind Adiga

Fotografia: Paolo Carnera

Produção: Smuggler Films e Netflix
Elenco: Adarsh Gourav, Rajkummar Rao, Priyanka Chopra, Vedant Sinha, Kamlesh Gill, Sandeep Singh, Tilak Raj, Satish Kumar, Harshit Mahawar
Duração: 125 minutos

FILMOGRAFIA DE RAMIN BAHRANI

Fahrenheit 451 (2018)

99 Casas (2014)

A Qualquer Preço (2012)

Desmanche – Perigo nas Ruas (2007)

Man Push Cart (2005)

Goodbye Solo (2008)

Plastic Bag (Curta-metragem, 2009)

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Eulália Isabel Coelho é jornalista, professora de cinema e escritora

mail bibacoelho10@gmail.com

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