Caxias do Sul 18/05/2024

O poeta do “Cântico das Criaturas”

Texto de São Francisco de Assis mudou o rumo da literatura na Itália... e no mundo ocidental
Produzido por José Clemente Pozenato, 06/10/2022 às 09:18:53
Foto: Marcos Fernando Kirst

Quando saí de São Francisco de Paula para entrar no Seminário Menor em Caxias do Sul, deparei com outro São Francisco: o de Assis. Ocorre que o Seminário era na época dirigido pela ordem dos Capuchinhos, e o dia de São Francisco de Assis, a 4 de outubro, era a data mais festejada do ano, com missa solene, almoço festivo e uma peça de teatro à noite.

Curioso como sempre, descobri que São Francisco de Paula recebeu o nome de Francisco porque seus pais eram devotos de São Francisco de Assis, que vivera três séculos antes. E fiquei sabendo também que o nome de Francisco – Francesco em italiano – foi dado pelo pai, que era negociante e fazia comércio com a região da Provença, na França. E embora o filho tivesse sido batizado com o nome de Giovanni di Pietro, o pai o chamava de “Francesinho”, diminutivo que no dialeto da Úmbria soava como Francesco.

Como era de esperar, tive contato não só com o lado espiritual do Poverello de Assis, mas também com seus escritos e seu famoso poema, conhecido como “Cântico das Criaturas”. Outro nome dado ao poema, ao que parece mais fiel ao original, é “Cântico do Irmão Sol” (Cantico di Frate Sole).

De fato, o poema começa louvando a Deus “especialmente pelo senhor irmão sol”, que dá a tudo e a todos o dia, com sua luz “radiante e de grande esplendor”. Mas ao longo das estrofes vai enumerando e louvando todas as outras criaturas: a irmã Lua e as Estrelas, o irmão Vento, o Ar sereno e o nebuloso, a irmã Água, o irmão Fogo e a “Terra, nossa irmã e mãe”: irmã porque é também uma criatura e mãe porque todos nascem em seu seio.

Esse Cântico provocou certa polêmica porque, ao louvar o lado material do mundo, colidia com a tradição agostiniana, presente em toda a Idade Média, que só dava importância ao mundo do espírito. Com isso, Francisco de Assis abriu caminho para a poesia de Dante e de Petrarca, onde o corpo passa a ser o centro da atenção, podendo ser fonte de virtude e não apenas de pecado.

Esse poema ficou na história, também, por ter sido o primeiro escrito na língua falada pelo povo - a “língua vulgar”, como era chamada – e não em latim. Com ele teria nascido, portanto, toda a literatura em língua italiana. Todos livros de história da literatura italiana começam pela citação de seu nome. E isso que teve uma vida bem curta, ao menos para os padrões de hoje. Nascido em 1182, morreu com quarenta e quatro anos, em 1226. Mas teve uma vida tão marcante e tão louvada que dois anos depois o Papa Gregório IX foi pessoalmente até Assis para decretar sua canonização.

Tive a fortuna, e certamente a graça, de percorrer Assis e redondezas em companhia de um amigo, professor da Università per Stranieri de Perúgia. Levou-me a visitar o monte onde se situava o mosteiro dos frades Franciscanos e também o das irmãs Clarissas, onde viveram São Francisco de Assis e Santa Clara, fundadores dessas duas ordens religiosas. Fui levado também a uma biblioteca com um vasto tesouro de memórias e depoimentos sobre o Santo. Vários relatos prenderam minha atenção. Visitamos depois a Basílica e a Capela da Porciúncula, onde está o túmulo do santo.

Só não fomos até a cidadezinha de Gubbio, próxima de Assis, famosa pelo episódio em que São Francisco amansou um lobo. Sua figura de protetor e de amigo dos animais foi a que mais se expandiu e popularizou. Mas a iniciativa dele de usar em versos escritos a língua falada pelo povo, como este começava a esboçar em canções populares, mudou o rumo da literatura da Itália e, por decorrência, da Europa e de todo o Ocidente. Em especial a partir da posterior adesão de Dante e de Petrarca a essa inovação radical da poesia.

É, portanto, uma boa escolha, ou uma feliz coincidência, que a nossa Feira do Livro de Caxias do Sul aconteça no mês de São Francisco de Assis, e na Praça Dante Alighieri!

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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