Caxias do Sul 16/05/2024

O peso das asas e a leveza das âncoras

Até que ponto uma leveza pode ser insustentável em nossas vidas?
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 10/12/2023 às 10:16:42
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista
Foto: Claudia Haupt

Há momentos na vida da gente (posto que tudo é momento) em que um raio de consciência nos atinge – uma espécie de iluminação repentina – a lampadazinha do Prof. Pardal. Por isso, adorei este dito de Cesare Pavese – poeta/escritor italiano: “Não nos lembramos de dias, e sim, de momentos”.

Pois, ao ler “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera - natural da República Tcheca – 1929/2023 – e – concomitantemente – reler (pela décima vez) as “Cartas a um Jovem Poeta” – de Rainer Maria Rilke –, poeta nascido em Praga- 1875/1926 – em que ele aconselha ao seu aprendiz – “...Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração – confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda.” ... liguei os pontos desses dois momentos...

...senti-me encorajada a colocar no papel, nessa folha ainda em branco, uma catarse pós-reflexão – e - de forma terapêutica, decifrei alguns pensamentos que me intrigam. Esclareço-os e me liberto das âncoras? Crio asas para alçar outros voos? Ou ao contrário. Âncoras nem sempre prendem. Podem ser libertadas. Asas eventualmente pesam e te derrubam. Será??

Explico um pouco mais aos meus leitores, para que não pensem que enlouqueci.

Pois, afinal, o que tem a ver o peso e a leveza, as asas e as âncoras – como uma leveza pode ser insustentável? Ou como uma âncora pode ser leve?

Admito que o título “A Insustentável Leveza do Ser“, como citei acima, obra em livro de Kundera, me instigou até crer tê-la compreendido. Metáfora desafiadora – pois só a fui decifrando aos poucos – enquanto a leitura fluía. Quanto às asas e âncoras, essas são crias minhas, anexo-as, como uma forma de dialogar com Milan Kundera sobre momentos de minha vida.

Esse romance, ao mesmo tempo em que explora as relações amorosas, as escolhas existenciais, liberdade, amor, infidelidade, enfim, a fragilidade da existência humana, ou ...a insustentável leveza do ser, cuja ação desenrola-se em Praga, a partir do ano de 1968, em um momento histórico delicado – político – opressivo: quando a Federação da Rússia invadiu a República Tcheca com seus tanques. São quatro os personagens que protagonizam esta história: Tereza e Tomas (ela, fotógrafa e ele, médico-cirurgião) e Sabina e Franz (ela, artista plástica e ele, professor acadêmico). E um spoiler – para quem se aventurar nessa jornada (livro e filme): Karenin – a cadelinha apaixonante que Tomas presenteia Tereza. Karenin recebeu esse nome porque, quando Tomas e Tereza se conheceram, ela estava com o livro de TolstoiAnna Karênina.

Presumo que meu leitor veio até aqui. Então, faço um convite: que tal elencar as âncoras e/ou asas presentes em momentos de suas vidas? Pesos x levezas. Sombras x luzes. Tristezas x alegrias. Negativo x positivo. Perdas x ganhos. Imaginação x realidade... E tantos binômios quantos o leitor achar necessário para seu autoconhecimento. Sei, é fácil dizer – dificílimo construir o autoconhecimento –, porque nunca o concluiremos, e traz sofrimentos nos mergulhos mais profundos dentro das águas de nós mesmos. Há que saber criar condições para emergir. É tarefa de cada um. Nossos temas de casa. Em compensação, a partir desse investimento em si, o resultado é gratificante, dá asas para harmonizar-se consigo e com o mundo. Traz liberdade para reconhecer as armadilhas que nosso cérebro nos apronta.

Fiquei tocada pelo que aprendi com a Insustentável Leveza. Kundera analisa a impermanência – não há predestinação em nada. A diversidade entre leveza e peso com alma e corpo. Há pessoas da alma e há pessoas do corpo. As “da alma” geram leveza pelo desprendimento. As “do corpo” o aprisionamento, o peso.

Vasinho de Cristal Tcheco que alguém trouxe especialmente para mim de Praga

(Foto: Marilia Frosi Galvão)

Em assim sendo, construí um prolongamento dessas ideias voltado a mim.

Em certos momentos, percebo que uma Outra Persona, advinda de mim mesma - me chama a atenção, tipo o Grilo Falante: - Marilia, deixa disso!! (Ela meio que grita comigo). Fecha esse ciclo. Deixa ir. Sai desse abismo. Te apaixona por algo, por alguém. Vai ler um livro. Vai ao cinema. Toma uma taça de vinho. Faz aquela comidinha só pra ti. Sai de casa. Dá uma volta. Tem (tu) momentos secretos. Recomeça tudo de novo. Ouve uma música. Toma um café com amigos. Tem amor próprio – não faz mais isso!! Não mendiga afeto. Medita. Anota coisas em um diário. Esvazia a mente. Dá outro cachorro-quente pro teu amigo de rua. Compra flores. Cuida da casa. De ti!!! A rejeição é difícil de lidar? É, o perdão te liberta. Perdoa, então. A solidão passa. O cansaço, a depressão, a ansiedade também passam. Tudo passa!!! Tem esperança, a esperança é a âncora da alma – especialmente nesse tempo de violência e perturbação. Para de te boicotar! Te afasta, sempre que possível, das pessoas do corpo, que são âncoras, que te puxam para baixo. Te aproxima das pessoas foguetes – das pessoas da alma. Cultiva teu espírito. Ama a tua família. Contata as pessoas que são anjos em forma de gente!! Investe no que dá asas à tua imaginação: sonhos, ideias, atitudes, livros. Por favor, Marilia!!! Menos pressa. Mais bom-humor. Menos estresse. Te arrisca, pode dar certo. Compra muitos lápis de grafite macio para escrever a mão... e tanto mais...

Admito ainda estar às apalpadelas, tento descobrir o mundo, as pessoas e eu, na minha individualidade. Por momentos, acho que sei, mas também não sei. Penso que cada escolha individual tem a leveza e o peso. Às vezes, preciso descartar algumas supostas certezas. Carrego nos ombros um passado que ainda pesa. Não tenho todas as respostas. Mas sempre faço perguntas. Nem sempre consigo reconhecer minhas emoções.

De qualquer forma, embora rodeada de pessoas, estou sozinha – ou solitária –, pois conto comigo sempre. Devo usar menos reticências. Colocar os pingos nos is. Cortar os tês. Colocar alguns pontos finais. Dar sentido à minha existência. Estou viva. Mas vou morrer. Não posso perder de vista alguns dos momentos incríveis, que se repetiram tantas milhares de vezes no passado, e momentos que se repetirão incontáveis vezes em minha vida – feita de momentos - posto que não lembramos dos dias, mas dos momentos, conforme diz o poeta.

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista

mail mailgalvao.marilia@hotmail.com