Caxias do Sul 13/05/2024

O burro de São Martinho

Lenda do passado é evocada para aquecer os primeiros frios da temporada das podas
Produzido por José Clemente Pozenato, 20/04/2023 às 08:13:11
Foto: Marcos Fernando Kirst

Comecei a conhecer a importância dada a São Martinho – San Martino, em italiano; Saint-Martin, em francês – com as pesquisas para escrever o romance A Cocanha, com o foco central na saída dos imigrantes da Itália para o Brasil.

Acontece que na Itália o dia de São Martinho, a 11 de novembro, era a data em que os proprietários de terras – i Signori – assinavam contrato com os trabalhadores braçais – i braccianti. Mesmo sendo num dia santo, os contratos eram definidos de acordo com a gana do patrão.

Dou uma ideia da situação numa cena em que o personagem Cósimo, então com quarenta anos, dentro do trem que ia para o porto de Gênova, conta aos companheiros o que aconteceu com ele. No dia de São Martinho, o senhorio avisou que não queria mais assinar o contrato. Depois de muita conversa com o escrivão, o patrão concordou, mas com uma condição: o contrato não seria mais meio a meio, mas com apenas um terço da produção para o empregado. Cósimo protestou, porque já tinha uma família com quatro filhos, mas “pelo menos tinha um telhado para ficar”. Então aceitou a proposta, que foi escrita com estas condições:

Me dava seis quilos de polenta por semana e, no ano, direito a ficar com quatro galinhas, dois gansos e a terça parte de um porco. Um porco que ia engordar mais de eu soprar nele do que pela comida. Ele assinou, eu assinei. [...] Nessa hora mesmo eu decidi que ia para a América.

A biografia de São Martinho é mais lendária do que histórica. Teria nascido no século IV na Hungria, que os romanos chamavam de Panônia. Como o pai era militar, deu a ele o nome de Martinus, diminutivo de Marte, o deus da guerra. Ele circulou pelo império até que seu pai ganhou um terreno em Pavia, na região de Lombardia, na Itália.

Ali Martinho dedicou-se a trabalhar como agricultor e se converteu ao cristianismo. Depois se tornou monge e se instalou num mosteiro francês e acabou sendo nomeado bispo de Tours, na França. Por isso seu nome oficial é São Martinho de Tours.

O fato de ter se dedicado à vida do campo, também enquanto monge, fez dele o padroeiro dos senhores de terra e de seus bracianti.

Uma lenda que atravessou séculos foi a de que ele deu início, em seu mosteiro, ao cultivo da videira em grandes extensões de terra no vale do Loire, na França. Ensinou aos monges como cultivar a videira e como fazer o vinho. Mas o fato, ou lenda, mais marcante foi a de que foi ele quem deu início à poda das parreiras. Ele não, o burro dele!

Conta-se que num dia em que saiu para inspecionar uns vinhedos, às vésperas do inverno, deixou o burro amarrado perto de umas parreiras enquanto ia verificar a cantina e seus vinhos. Voltou algumas horas depois e viu uma coisa horrível: o burro tinha se soltado e mascado vários pés de videira, comento inclusive parte dos ramos, que os portugueses batizaram de “sarmentos”.

Mas aí um milagre aconteceu: no ano seguinte os monges viram, estupefatos, que as videiras que o burro tinha mascado tinham mais uvas e uvas mais bonitas do que as outras! Os monges aprenderam a lição e, a partir daí, se instituiu a poda das parreiras em toda a Europa. E depois no resto do mundo.

A única coisa que mudou, a meu ver, é que antes a poda era feita com a “tesoura de poda”, e agora é feita com uma pequena serra elétrica, pelo que vi na beira do Rio das Antas. Na realidade, quem usava a serrinha eram os jovens. Um senhor de mais idade, que devia ser o pai deles, com ar contrariado, continuava usando a tesoura...

Com o frio que está chegando, está chegando também a época da poda, graças ao burro de São Martinho...

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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