Caxias do Sul 18/05/2024

La Lumièra, o Boitatá e o Fogo-Fátuo

Acervo popular de histórias fantásticas alimenta o imaginário evocado pelo Dia das Bruxas
Produzido por José Clemente Pozenato, 27/10/2022 às 12:31:17
Foto: Marcos Fernando Kirst

Está próximo o dia do Halloween, que é também o Dia das Bruxas, que ocorre a 31 de outubro, na véspera do Dia de Todos os Santos e antevéspera do Dia de Finados. As pessoas ficam perguntando: o que motivou a escolha dessas datas para lembrar seres fantásticos?

Acontece que o ente fantástico mais disseminado na imaginação ao redor do planeta é a lâmina de fogo que surge e circula em banhados e cemitérios. Na tradição portuguesa, foi chamada de Bicho-Papão. No Brasil, ganhou o nome de Boitatá, que em tupi-guarani significa cobra de fogo. Em todas as culturas, essas luminosidades que serpenteiam no escuro da noite são almas de defuntos, em busca de auxílio ou trazendo uma punição.

Na tradição vêneta, recolhida por Cecília Battaglin Ignazzi na obra aqui já citada – “Le storie dei filò” – essas chamas que evocam um mundo oculto têm o nome de lumete, com a variante dialetal lumiere, que pode ser traduzido por “luzinhas”.

O livro dessa pesquisadora (do qual possuo um exemplar, com dedicatória e autógrafo concedidos em 8 de novembro de 1991, aqui em Caxias do Sul) traz um elenco inumerável de personagens fantásticos, em versão popular de diferentes lugares do Vêneto. Cada uma delas vem acompanhada por uma ou mais histórias contadas nos filò. São fadas, bruxas, fantasmas, magos, animais assustadores e, entre eles, a popularíssima figura do Orco, um atributo do Diabo, de onde nasceu a expressão “Orco Diáol”, dita diante de algum dissabor ou desastre. Ela é assim descrita:

“O Orco era um homem grande como uma casa e até mais; com as pernas, uma de cá e outra de lá, fazia uma ponte no Vale del Sasso, e quando um passava por baixo, ouvia uma voz grossa e rouca que dizia: “Passa, não passa, passa, não passa”. Se a pessoa seguisse adiante, não acontecia nada, mas se alguém respondesse podia ser sufocado ou despedaçado”.

Em outra variante narrativa, ele é visto com este formato:

“O Orco era um homenzarrão feio com um chapéu grande na cabeça. Ele se escondia no Vale del Sasso e, quando passavam por lá as cabras, ele as pegava no colo e as afogava. De noite, andava girando vestido de preto e cheio de sininhos. Se visse uma cruz, desaparecia”.

Nas histórias infantis, ele aparece como devorador de crianças que se arriscam a sair de casa à noite. E aparece também na forma feminina, a Orchessa, da qual consta esta historieta:

“A Orchessa vagando à noite

Uma vez um homem saiu bem cedo para ir ao mercado de Maróstica. Caminhando ao longo da estrada, viu no campo uma plataforma de dança, cheia de bailarinos e músicos. Parou para olhar e os músicos o chamaram, para que fosse até eles. O homem não sabia o que fazer e, enquanto decidia, ouviu bater três horas. E disse: ‘São três horas?! Esqueci de olhar’. Fez o sinal da cruz, como é costume quando batem três horas: e desapareceram plataforma, bailarinos e músicos. Era a Orchessa que estava em giro!”.

Desse acervo popular de histórias imaginárias é que surgiu um novo gênero literário, o das histórias fantásticas, inaugurado por Charles Perrault (1628-1703). Foi seguido e imitado por Jacob e Wilhelm Grimm na Alemanha e Hans Christian Andersen na Dinamarca, para citar os nomes mais famosos. No Brasil, basta lembrar Monteiro Lobato e, no Rio Grande do Sul, Simões Lopes Neto, com sua incrível história da “Salamanca do Jarau”. É um veio que continua inesgotável...

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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