Caxias do Sul 18/05/2024

Antes do 'Halloween', havia 'Le Streghe'!

Crenças e fábulas de seres fantásticos vieram junto nas malas dos imigrantes italianos
Produzido por José Clemente Pozenato, 20/10/2022 às 09:02:26
Foto: Marcos Fernando Kirst

A crença popular em seres fantásticos se encontra em todas as culturas. Da cultura indígena vieram o Saci Pererê, a Iara e outros entes.

Na cultura gaúcha, a figura do Negrinho do Pastoreio é imbatível. Na tradição dos imigrantes italianos as figuras mais relevantes são o “Sanguanel”, também conhecido como “Mazzarollo”, o que dá nós em tudo, e as bruxas. Em italiano a bruxa é chamada “strega”, no dialeto vêneto ela é“striga” e no Talián ganha o nome de “stria”.

Toda essa herança provinda do Vêneto, como observa Cecilia Battaglin Ignazzi, com base em pesquisa para sua tese de láurea, “cruza elementos da mitologia greco-romana, da germano-escandinava e da eslava. Um contato direto com as tradições populares germânicas foi instaurado com o assentamento de colonos bávaros em algumas zonas montanhosas do Vicentino, do Veronese e do Trentino”.

Essa autora circulou também pelas regiões de imigração da América, e teve seu livro, intitulado Le storie dei filò - esseri fantastici nelle tradizioni popolari venete, publicado em italiano pela Editora Maneco, em 1989.

Na região das colônias italianas do Rio Grande do Sul, a grande maioria dos imigrantes proveio precisamente dessas regiões montanhosas do norte da Itália, mais a faixa plana ao pé das montanhas. Trouxeram com eles essas crenças, fábulas e relatos, que encontraram aqui um ambiente físico de todo favorável para a sua permanência cheia de verossimilhança, nas montanhas cobertas de florestas. E também mantiveram um ambiente social propício: o “filó” com suas noitadas de “stórie”.

Gianluigi Secco (1946-2020) foi outro belunês que perambulou por regiões de imigração no mundo inteiro. Perito em etnomusicologia, recolheu muito material da cultura oral vêneta: danças, cantos, histórias, mitos, festas e outros usos e costumes do meio agrícola, de onde vieram nossos imigrantes.

Com Giorgio Fornasier, também nascido em Beluno, em 1947, criou a dupla “I Belumat”. Teve então a ideia de compor canções sobre “os mitos da tradição vêneta no contexto nacional e europeu”, publicadas em livro e em quatro CDs, no ano de 2013. Entre aqueles a quem dedica esse trabalho estão os nossos Piero Parenti e Frei Rovilio Costa, em mais uma evidência de que o cordão cultural popular não se rompeu na travessia no oceano! Essa referência se explica porque o grupo Miseri Coloni estabeleceu intercâmbio com “I Belumat”, com a realização de vários eventos, aqui e na Itália.

Dentro desse relacionamento foi que nasceu, também, o espetáculo “Mitincanto – As aventuras e desventuras de Nanetto Pipetta”, levado ao palco pelo Miseri Coloni. Nele, além de rememorar essas tradições, e de mostrar as canções compostas por Gianluigi Secco, rememora-se também a língua em que essas lendas foram vividas e contadas aqui no Brasil: o Talián.

Considerando-se a origem delas, não deve provocar estranheza a semelhança, com as devidas adaptações, de entes fantásticos da cultura popular vêneta com a encontrada, por exemplo, nos contos dos Irmãos Grimm. Nascidos na região de Hesse, na Alemanha, os Grimm recolheram em seus contos, que ganhariam divulgação mundial através do cinema, personagens fantásticos das histórias que ouviram na infância.

E, para concluir, a tradição do Halloween, vinda dos Estados Unidos para o Brasil, por meio do cinema e também das escolas de língua inglesa, tem as mesmas raízes germânicas. Então, tudo bem! Substituir a Festa das Bruxas pelo Halloween não rompe o cordão umbilical de nossas tradições locais...

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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