A modernização do crédito consignado, impulsionada recentemente pelo sistema e-Consignado, trouxe indiscutíveis avanços na simplificação do acesso ao crédito. No entanto, é fundamental que empresas tratem esse tema com cautela, sob pena de comprometer a própria saúde financeira e trabalhista da organização, além de contribuir involuntariamente para o endividamento dos seus empregados.
A facilidade tecnológica, que permite que o empréstimo seja contratado com poucos cliques e tenha desconto automático em folha, ignora um ponto central: o salário do trabalhador não pode ser tratado como simples margem consignável. Ele é, antes de tudo, o instrumento de sua subsistência. Quando parcelas de empréstimos se sobrepõem a descontos obrigatórios previstos em Acordos Coletivos de Trabalho — como plano de saúde, alimentação e transporte —, instala-se um cenário preocupante de desequilíbrio contratual e potencial conflito judicial.
Empresas que autorizam de forma indiscriminada a consignação automática em folha de pagamento se veem, muitas vezes, em posição delicada. Caso a soma dos descontos inviabilize o cumprimento das obrigações previstas em norma coletiva, surge o risco de litígios trabalhistas, além de questionamentos sobre a omissão do empregador diante de uma prática financeira que, embora legal, pode ser abusiva.
A legislação — especialmente após a MP 1.292/2025 — estabelece o limite de 35% para descontos em folha. Esse teto, no entanto, não é uma simples permissão. É uma salvaguarda jurídica e ética. Como ensina Ronald Dworkin, o Direito deve ser interpretado à luz dos valores de justiça e dignidade. O limite legal só faz sentido se interpretado como barreira mínima para preservar o mínimo existencial do trabalhador.
Ademais, a vulnerabilidade do empregado diante de ofertas “pré-aprovadas” e descontadas diretamente do contracheque é amplificada por vieses comportamentais amplamente estudados na economia. Conforme Richard Thaler, decisões de crédito costumam ser influenciadas por ilusões de controle, otimismo acrítico e pelo chamado “desconto hiperbólico” — que leva o indivíduo a supervalorizar ganhos imediatos e subestimar consequências futuras.
Nesse cenário, a empresa deve ir além da legalidade formal e adotar uma postura proativa. Algumas medidas recomendadas incluem:
Revisão das políticas internas: Estabelecer critérios para priorização de descontos essenciais (saúde, alimentação, transporte), antes de autorizar novos consignados.
Negociação com instituições financeiras: Impor exigências mínimas de comprovação de capacidade de pagamento.
Educação financeira contínua: Promover treinamentos, cartilhas e simulações que alertem para os riscos do superendividamento.
Previsão em ACTs ou regulamentos internos: Dispositivos que limitem ou organizem a forma de concessão dos consignados, sempre preservando a margem necessária à sobrevivência do trabalhador.
Ações judiciais ou administrativas: Em caso de abusos, a empresa pode e deve recorrer ao Judiciário ou aos órgãos reguladores (como o Comitê Gestor das Operações de Crédito Consignado) para garantir o equilíbrio da relação.
A simples adesão ao sistema e-Consignado, sem reflexão, pode representar uma armadilha silenciosa. É imprescindível que empregadores compreendam que o cumprimento da lei não basta: é preciso atuar com responsabilidade ética e social, adotando políticas que evitem a reprodução de práticas predatórias dentro do próprio ambiente de trabalho.
Empresas responsáveis não se limitam à conformidade normativa. Elas protegem seus trabalhadores, zelam por sua saúde financeira e, por consequência, garantem relações de trabalho mais sustentáveis e equilibradas.
Ciane Meneguzzi Pistorello é advogada, com pós-graduação em Direito Previdenciário, Direito do Trabalho e Direito Digital. Presta consultoria para empresas no ramo do direito do trabalho e direito digital. É coordenadora do Curso de Pós-Graduação Latu Sensu em MBA em Gestão de Previdência Privada – Fundos de Pensão, do Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG.
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