Caxias do Sul 18/04/2024

As mulheres de Minsk

Teorias da conspiração direcionam o foco do assassinato de Kennedy à atualmente conturbada Bielorrússia
Produzido por Gustavo Miotti, 17/09/2020 às 09:13:56
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Teorias da conspiração são quase tão velhas quanto a existência da humanidade e até hoje aguçam as nossas curiosidades e imaginário. E o que leva as pessoas a acreditar nelas? Segundo o psicólogo e pesquisador francês Anthony Lantian, os indivíduos que tendem a acreditar em teorias conspiratórias são normalmente desconfiados, possuem baixa agradabilidade e pensamento maquiavélico. Eles também se sentem especiais e privilegiados por serem mais informados em temas ligados a política e sociedade.

Não preciso usar da ciência ou a opinião de experts para afirmar que não existe povo que acredita mais em teorias conspiratórias do que o americano. Eles têm uma paixão quase mórbida por teorias de conspiração. Elas são amplamente discutidas entre amigos e família, existem inúmeros programas de TV, documentários e filmes e, agora, ganharam ferocidade quase sanguínea nas redes sociais.

As teorias que mais hipnotizam a psique da sociedade americana são conectadas ao assassinato do presidente Kennedy (JFK). Quase como uma obsessão nacional, mais de 1.000 livros se encontram à venda na Amazon, que teorizam e propõem versões alternativas à do governo americano; que identificou Lee Oswald como o único responsável pelo assassinato do presidente no contestado Warren Report.

O prédio de onde Lee Oswald disparou o tiro fatal contra JFK era um armazém de livros escolares na época, e se transformou no Museu do 6º Andar em Dallas, no Texas. O museu, através de diversas exibições, fala do assassinato, das teorias de conspiração e do legado de Kennedy. Uma das teorias leva à misteriosa Minsk, na antiga União Soviética e hoje Bielorrússia (ou Belarus).

Três anos antes do assassinato, Lee Oswald desertou do exército americano, imigrou para o inimigo comunista e viveu lá por mais de dois anos, antes de regressar aos Estados Unidos e, nos meses seguintes, cometer o crime. Diversas teorias falam de uma suposta conexão entre Oswald e a KGB em Minsk (serviço secreto soviético) para assassinar Kennedy.

Hoje, quase 60 anos depois de Lee Oswald ter morado naBielorrússia, os mistérios de Minsk se dão mais por ser a capital da última ditadura na Europa e o país sobreviver de uma forma parecida com a antiga União Soviética. A polícia secreta também se chama KGB, mantendo o mesmo símbolo e táticas de repressão da versão original.

As mais de 400 estátuas de Stalin espalhadas nas cidades do país lembram os cidadãos de como as coisas funcionam por lá. E o que mais rememora o império comunista é a tirania do regime de Alexander Lukashenko, que criou uma versão URSS 2.0. Ele está no poder há mais de 26 anos e foi “reeleito” pela sexta vez em agosto para mais um mandato de cinco anos, com mais de 80% dos votos. Uma enorme fraude, segundo grande parte da população e a União Europeia.

E, por incrível que pareça, Lukashenko adora uma piada contada no país que fala da sua especialidade, que é fraudar eleições:

Um avião carregando os presidentes Trump, Putin e Lukashenko cai no meio do mar. Os três são os únicos sobreviventes e conseguem um bote salva-vidas.

Trump pergunta: Quem vai remar?

Lukashenko diz: Vamos fazer uma eleição?

Putin e Trump concordam.

Um tempo mais tarde, Lukashenko está dormindo no bote, Trump e Putin continuam remando sem parar.

Trump questiona: Vladimir, se somos em três como pode ter quatro votos?

Seria cômico, se não fosse trágico. Mas, ao longo dos mais de 25 anos no poder, ele repete a piada e vai apenas trocando o nome dos atuais presidentes dos EUA e Rússia. Já passaram Clinton, Bush, Obama, e Trump pela Casa Branca e Yeltsin, Medved e Putin no Kremlin.

Mais ou menos uns sete anos atrás, numa viagem à Europa, eu incluí a misteriosa Minsk no roteiro. O número de conexões de voo com as demais capitais da Europa era muito pequeno, o que ajudava a aumentar o grau de mistério. Finalmente, encontrei um obscuro voo da estatal do país, Belavia, saindo de Milão, onde eu visitava uma feira.

Contatei uma das poucas agências de viagem de Minsk e era formada por estudantes universitários que aproveitavam para praticar o inglês e ganhar uns trocos. Tinha quase tudo pronto, mas precisava ir atrás do visto. Liguei para a Embaixada da Bielorrússia em Brasília e, surpreendentemente, o próprio embaixador do país me atendeu, com um português um tanto quanto exótico mistura de português da terrinha e russo.

Expliquei sobre a minha intenção e ele me passou uma extensa lista de documentos necessárias para o visto de turismo. Nada que eu não poderia arrumar com algumas horas de esforço, porém, para minha surpresa, o embaixador me diz que, após tudo pronto, eu deveria comparecer pessoalmente à Embaixada. Tentei argumentar que, para outros países, era possível fazer esse serviço pelos correios, mas não adiantou nada e a viagem foi por água abaixo. Ficou a frustação pela viagem não viajada.

O inverno em Minsk pode chegar a -35 graus C.

Monumentos lembram os mortos na II Guerra Mundial

Desejava conhecer Minsk também pela sua imponente arquitetura neoclássica europeia do século 20, com a maioria dos grandiosos prédios no seu centro com arcadas barrocas e esculturas e obeliscos celebrando seus heróis da II Guerra Mundial, integrados a parques arborizados ao longo do rio Svisloch. A cidade foi totalmente destruída na batalha entre os nazistas e soviéticos e mais de um quarto da população do país morreu neste capítulo da história não muito conhecido. A cidade foi totalmente reconstruída, um dos poucos legados positivos de Stalin foi a construção de uma nova Minsk, considerada o mais completo exemplo da arquitetura Realista Socialista na Europa, funcionando como um grande monumento àvitória da guerra.

No início deste mês, vendo as terríveis notícias da violência contra a população, resolvi contatar a guia da época que tinha se mostrado muito gentil e cordial para tentar ter notícias mais pessoais. Ela concorda em falar comigo sobre a situação na capital, mas me pede para não usar o verdadeiro nome dela. Chamarei ela do nome mais popular do país: Sofia. Nada como o google para nos dar esses tipos de respostas.

Sofia, agora graduada em direito, tem trabalhado de forma voluntária fazendo petições para juízes liberarem os manifestantes presos. Ela me conta que, desde a eleição fraudulenta, a população tem se manifestado pacificamente, sem interromper o funcionamento da cidade. Sofia comenta que os bielorrussos estão cansados do regime e que continuarão a protestar de forma organizada, frisando que os manifestantes são tão organizados que respeitam até os sinais de trânsito.

As mulheres estão na vanguarda do movimento anti-Lukashenko desde antes da eleição, quando os três principais líderes da oposição foram presos e suas esposas se uniram e lançaram a candidatura de uma delas, Svetlana Tsikhanouskaya, contra o atual ditador. A oposição e a União Europeia denunciaram mais uma fraude eleitoral, e o país tem vivido um furacão de emoções, segundo Sofia, com dias bons quando se tem esperança da queda do regime e dias terríveis.

Entre este último, o dia 13 de agosto, quando mais de 7 mil manifestantes foram presos e muito deles torturados em prisões pelo país. Relatos chocantes contam que se podia ouvir os gritos dos manifestantes sendo torturados, como se fossem crianças chorando. Nos dias seguintes, as mulheres do país saíram nas ruas mostrando as fotos dos seus maridos, namorados e familiares torturados.

Por sua vez, o governo tem usado o principal instrumento de uma ditadura, que é espalhar o medo. Sofia conta que atividades simples como ir ao supermercado se tornaram perigosas, pois a polícia e milícia disfarçadas prendem suspeitos protestantes. Como grande parte dos bielorrussos trabalham em estatais, o governo usa isso como outra forma de repressão: protestantes que são identificados perdem seu emprego e benefícios.

Lukashenko criou sua própria teoria conspiratória, dizendo que a União Europeia está por trás das manifestações e procura apoio da Rússia para evitar sua queda.

Uma forma simbólica, mas poderosa de se manifestar, é mostrar a antiga bandeira da Bielorrússia, vermelha e branca, que foi substituída por Lukashenko por uma que lembra a antiga União Soviética. Lukashenko mandou a polícia arrancar as bandeiras das sacadas dos manifestantes. Porém, estes, de forma criativa, debocham do ditador ao pendurar roupas íntimas brancas e vermelhas pelos varais do país.

Entre os fatores que Sofia considera chave para o despertar da sociedade, figurou a desastrada resposta de Lukashenko à Covid-19. Ele menosprezou totalmente a existência do vírus. O governo não tomou nenhuma medida de contenção, deixando o povo à mercê do vírus.

Lukashenko chamou o vírus de uma psicose e que poderia ser tratada com uma boa dose de vodca e sauna. Até o campeonato de futebol do país teve, finalmente, seus 15 minutos de fama, por ter sido o único no mundo que não parou por causa da pandemia.

Fotos fonte: Tyb.by

E o regime não perdoa nem Svetlana Alexievich, escritora e provavelmente a mais proeminente cidadã do país, que ganhou o Nobel de Literatura em 2015, algo raro para um autor de obras de não-ficção. Entre as suas principais obras está “Vozes de Chernobyl”, que serviu de base para a minissérie da HBO, em 2019, contando a vida das pessoas afetadas pelo desastre nuclear.

Apesar do desastre nuclear ter ocorrido na vizinha Ucrânia, os ventos carregaram a radiação para a Bielorrússia. Os líderes soviéticos, com o objetivo de proteger Moscou e eles mesmos, forçaram, através de explosões, que a chuva radioativa caísse sobre território bielorrusso. Pilotos russos eram vistos no céu do país facilitando as nuvens de chuva através de produtos químicos e, com isso, mais de 70% das partículas radioativas caíram sobre a Bielorrússia.

Somente em 1989 os bielorrussos souberam disso e de que mais de 40% do território estava contaminado, causando ainda graves doenças na população. O país ainda sofre com resquícios do desastre: cerca de 20% da terra na Bielorrússia ainda está contaminada por radiação acima do tolerável.

A autora conecta o momento atual do país com o desastre na usina nuclear de Chernobyl, quando os dirigentes do Partido Comunista ignoraram os altos índices de contaminação e convocaram os trabalhadores às manifestações no desfile do Primeiro de Maio em Minsk no dia 1º de maio de 1986, apenas cinco dias após a explosão do reator nuclear.

Lukashenko, por sua vez, convocou a população para desfiles militares comemorando o aniversário da vitória na II Guerra Mundial no meio da pandemia. Aleksiévitch qualifica as comemorações de “espetáculo tragicômico que resultou em um novo surto do vírus”.

Svetlana, juntamente com as outras três líderes, comanda a oposição ao governo. Recentemente, disse temer ser presa a qualquer momento pelo regime e afirmou: “Primeiro eles roubaram nosso país e agora estão roubando o melhor de nós”, falando sobre a prisão de uma das líderes e da fuga de outras duas.

Durante esses mais de 25 anos, a Bielorrússia parecia uma sociedade adormecida e atrofiada. As pessoas não acreditavam na possibilidade de mudança e as que se acordavam migravam para outro país. Parece que, finalmente, o país acordou. Tem uma geração que não quer escapar da opressão, mas quer que, desta vez, o opressor saia do poder. Sofia profetiza: “Por que temos de emigrar para viver descentemente? Lukashenko renunciará e, finalmente, a Bielorrússia florescerá”.

Sofia, apesar das dificuldades, mostra ter muito orgulho do seu país, e somente deseja para a Bielorrússia um governo descente e democrata. Que essa pequena terra, que foi tão judiada pela história (II Guerra Mundial, comunismo, desastre nuclear e uma ditadura cruel), tenha despertado para um tempo de paz. Parafraseando Mandela, as mulheres de Minsk aprenderam que a coragem não é a ausência do medo, mas o triunfo sobre ele.

Gustavo Miotti, economista, sócio da Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.

mailgmiotti@rollins.edu

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