Caxias do Sul 19/04/2024

Entre cristais e cervejas

Uma educativa e transformadora viagem ao leste europeu em idos tempos
Produzido por Gustavo Miotti, 20/08/2020 às 09:24:58
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Que tal visitar um país que não existe mais? Não precisa de passaporte e passagem aérea, só alguns minutos da sua atenção e imaginar um retorno há quase trinta anos no tempo. O ano é 1992, o presidente Collor tinha aberto a economia brasileira e as empresas rapidamente precisavam se modernizar para sobreviver à abrupta abertura. Eram tempos muito bicudos para o país, estávamos vivendo ainda as cicatrizes de um confisco, o impeachment do presidente se encaminhava a passos largos e o desemprego atingira níveis jamais vistos na história do nosso sofrido país.

Eu morava em Milão na época, a cidade italiana que mira o futuro num país que contempla o passado. Fazia um estágio na Câmara de Comércio, chamada de Compagnia delle Opere. Confesso que gostava muito do meu trabalho, ciceroneava empresários brasileiros que iam para a Itália buscar tecnologia para suas indústrias.

Com isso, tive a oportunidade de conhecer diversas regiões do país e empresas. Porém, nem tudo eram rosas, ou melhor, o espinho era meu minguado salário de estagiário, que ia quase todo no aluguel de um pequeno apartamento de dois quartos que dividia com mais cinco pessoas ligadas à Câmara de Comércio na Corso Garibaldi.

E com a severa crise no Brasil, o paitrocínio cobriu a passagem aérea e dólares para os dois primeiros meses. E o câmbio era muito cruel para quem vivia de cruzeiros. Lembro que um refrigerante num bar de Milão, na época, era o equivalente a uma refeição para duas pessoas num bom restaurante do Brasil.

Então, estava chegando o esperado feriadão de Páscoa depois de um longo inverno e meu chefe italiano, sabendo que eu e o Olimar, o outro brasileiro que trabalhava na Câmara, tínhamos escassos recursos para viajar, nos chamou e, como de costume, com seu jeito de chefe italiano mandão, disse: “Vocês vão para a Tchecoslováquia”!

Ele recém tinha falado por telefone com um amigo tcheco, o Peter Elias, que morava em Praga e estaria fora da cidade no feriadão. Por muita coincidência e peculiaridade, o Peter tinha morado no Brasil, aonde seu pai foi professor visitante na área de doenças tropicais na Universidade Federal de São Luiz, e ficou feliz em emprestar seu apartamento para os jovens brasileiros passarem o feriadão lá.

Fiquei bem animado com o convite, afinal, fazia pouco mais de dois anos que tinha caído o Muro de Berlim e cruzar a antiga Cortina de Ferro parecia uma bela aventura. Também eu tinha uma admiração pelo presidente do país, Vaclav Havel, que tinha sido o líder da Revolução de Veludo e liderou a revolta contra o governo comunista sem derramar uma gota de sangue.

A viagem também contava com o reforço financeiro de chamar meu irmão, Rodrigo, que na época morava em uma cidade próxima, Brescia, para rachar os custos da viagem. Alugamos um carro, obviamente o mais barato, um Fiat Lancia Y 10, uma versão reduzida do antigo Uno da mesma Fiat, compramos um mapa e fomos.

O caminho mais curto na época era cruzar a Áustria e a região da Bavária na Alemanha, dois lugares tão lindos que pareciam ter saído de um conto de fadas. Nas perfeitas autobahn (autoestradas) alemãs, o nosso pobre Fiat quase era jogado para fora da estrada pelos caminhões e rápidos BMWs e Mercedes.

Paramos para almoçar numa cidadezinha no interior da Bavária. Lembrei que, na época, a internet não existia e o turismo era infinitamente menor do que hoje. O restaurante, que devia ser o único da cidade, parecia muito animado pelo lado de fora, bandinha alemã tocando alto e gente animada.

Mas ao entrar no restaurante, tudo parou, silêncio e todos nos encarando, parecia que éramos extraterrestres chegando na Terra. Acho que a semelhança do Olimar com o nosso Pelé ainda era uma imagem exótica, na época, naquele interior da Alemanha. Mas, com a eficiência germânica, logo tudo voltou ao normal e tivemos uma excelente e generosa refeição.

Nossa próxima parada era a fronteira entre os dois países. A Cortina de Ferro tinha caído, mas o contraste entre a perfeita Alemanha, que parecia, aos meus olhos, que tudo erra corrigido no Photoshop, e a entristecida, desgastada e deprimida Tchecoslováquia, era inacreditável. Era como cruzar uma linha do tempo, o encontro do que deu certo e o do que deu muito errado.

Aproximaram-se os guardas da fronteira e, ao mostramos os passaportes verdes do Brasil, você já deve imaginar o que eles disseram com um longo sorriso: “Pelé... Pelé... Pelé!” Fazia trinta anos que, com ele lesionado, vencêramos a Tchecoslováquia na final e nos tornáramos bicampeões mundiais.

Na fronteira mesmo, trocamos nossas suadas liras italianas pelas coroas tchecoslovacas. Em contraste ao que vejo do país, são lindas cédulas, coloridas e cheias de vida. Na estrada, padrão brasileiro, encontramos diversas pessoas vendendo cristais e cervejas, as especialidades do país conhecidas internacionalmente.

As animadas cédulas da coroa tchecoslovaca

Depois de alguns quilômetros, paramos num desanimado e vazio café na beira da estrada. Ao entrarmos, a senhora que lá trabalhava nos dá uma olhada, do tipo “o que vocês estão fazendo aqui”. A variedade de produtos é, no mínimo, constrangedora: apenas café, um abatido bolo e os já conhecidos cristais e cerveja.

Ao pagar o café, a senhora me devolve quase todo valor em troco. Fiz a conversão e comparação: o café, que por sinal estava bem ruinzinho, custava menos de 10% do que pagaria na Itália. Estava começando a ficar interessante a viagem.

Seguimos firmes rumo à capital e chegamos, ao entardecer, nos subúrbios de Praga. O apartamento do Peter era num prédio bem antigo, sem elevador, mas limpo e mais do que suficiente para nossa jornada. Uma coisa diferente e bizarra, porém: o chuveiro e uma pequena banheira ficavam dentro da cozinha, alguma invenção tola de arquiteto comunista.

Nos dias seguintes, exploramos a extraordinária Praga, com uma mistura de arquitetura, pontes e o castelo vigiando a sua beleza, que fez até Hitler tê-la poupado da destruição. Para descrever o meu sentimento pela cidade, busco uma frase de um autor desconhecido: “Se as cidades europeias fossem um colar, Praga seria o diamante entre as pérolas”!

Circulando pelo país, nota-se que a economia local ia se adaptando ao novo sistema de forma dolorosa. Vimos várias indústrias fechadas no caminho até Praga e, na cidade, boa parte do comércio também estava fechada; as raras lojas abertas tinham pouca variedade de produtos. Praticamente conseguíamos gastar nossas coroas apenas em refeições que eram boas e muito baratas, por sinal. Para celebrar a Páscoa, nos atrevemos a descobrir o melhor restaurante de Praga, segundo uma informação que obtivemos, e nos deliciamos com a comida local em abundância.

Mas o mais interessante personagem desta história era o presidente do país na época: Vaclav Havel. Ele vinha de uma família rica, o que o condenou no regime comunista a não poder estudar literatura e somente fazer um curso técnico. Mesmo assim, se tornou intelectual e líder na luta contra o comunismo, com textos que circularam clandestinamente na Europa Oriental.

Olimar e Rodrigo na frente do prédio de Petr Elias, em Praga (abril de 1992)

Havel tinha descrito os tempos sob o regime comunista como uma vida de mentira. Ele afirmou que “muitas vezes repetida, talvez a mentira vire verdade, mas, na repetição infinita, o eco se esvazia de qualquer significado”.

Por suas cartas e livros desafiando o governo, foi preso diversas vezes, chegando a ficar numa das prisões quase cinco anos. E recebia, talvez como a forma mais dura de punição, a proibição de escrever dentro de sua cela.

A única exceção permitida era escrever uma carta semanal à sua esposa e aproveitou muito bem essa sinistra punição, transformando as 144 cartas escritas em seu mais famoso livro: “Cartas a Olga”. Quando solto, foi proibido de escrever (o direito que exerceu às escondidas) e teve de trabalhar numa cervejaria para ganhar a vida.

Havel referiu que as propagandas socialistas pregavam uma sociedade fraterna, mas os próprios vizinhos se enxergavam como competidores por alimentos e roupas num regime de muita escassez material. A desconfiança e suspeita tornavam-se generalizadas quando toda pessoa com quem você interage é um potencial agente secreto.

Ele assumiu a presidência logo após a queda do regime comunista e conduziu o processo de separação amigável do país entre tchecos e eslovacos de forma brilhante. Em apenas seis meses, os tchecos e os eslovacos voltaram a ser países independentes, sem uma gota de sangue, algo raro na Europa Oriental da época.

Seu legado no leste europeu é visto como uma bússola de moralidade. A revista “The Economist” publicou em seu obituário que Havel era conhecido por ser muito diferente do político comum. Era reticente, modesto, impaciente e honesto e tinha uma visão moral de que todos possuíam o direito a uma qualidade de vida descente. Havel também era conhecido por detestar a pompa e a superficialidade dos políticos comuns.

O legado de liderança de Havel, se deu através de investimentos na educação, hoje uma das melhores do mundo segundo estudo PISA, à frente de países muito mais ricos como Suíça e Áustria. A transformação econômica do país do socialismo para o capitalismo foi com bastante sofrimento, muitas estatais ineficientes tiveram de ser fechadas, mas as reformas renderam frutos no longo prazo. Para se ter uma ideia, em 1992, a renda per capita era semelhante à do Brasil. Hoje, a da República Tcheca ultrapassa cerca de três vezes a do nosso país.

Havel sabia que políticos e promessas vêm e vão, mas o que permanece é o anseio do povo por eleger líderes que possam gerar sonhos e visões que transcendam seus interesses pessoais. E essa vontade do povo deve ser tratada como um lindo, mas frágil cristal tcheco, para não cairmos na falácia das armadilhas antidemocráticas.

Vaclav Havel na Praça Venceslau em Praga

“Mantenha-se próximo dos que buscam a verdade e fuja daqueles que a encontraram” (Vaclav Havel).

Gustavo Miotti, economista, sócio da Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.

mail gmiotti@rollins.edu

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