Os senhores e as senhoras que conhecem o Cassiano Ricardo por ter sido poeta, talvez se interessem em saber que antes disso ele quis ser gaúcho.
Na época era uma coisa boa: significava liberdade, frio na barriga, cabeleira solta num cavalo campo afora. E de vez em quando uns faconaços, entre um mate e outro.
Era o ano de 1918. Cassiano Ricardo Leite chegou botando banca de adevogado na capital moral da Serra Gaúcha. E já se amigou com os maragatos. E começou a editar um jornal. Mas o intendente de Vacaria, claro, era cupincha do Borges de Medeiros, que por aquela altura já tinha recebido a poética alcunha de Chimango, por causa da ave de rapina que não quer soltar a carniça (o governo rio-grandense, no caso). Então por aí já se pode ter ideia do entrevero em que o forasteiro se meteu.
Chegaram pro Ricardinho, já na primeira semana:
— Vancê tome tento, aparceiro, que o coronel aqui ele bota os enemigo no lombo duma mula e desbanda pra riba de lá do rio Pelotas.
Naquela época, andava todo mundo de garrucha e punhal na rua, na igreja, na cama. Coisa mais comum era o cidadão perder as amídalas num duelo. Mas o Cassiano ali, firme. Estribado na lei e nuns oito fios de bigode, ele passou quatro anos desafiando os desmandos da localía como quem defende a língua brasileira contra o Olavo Bilac.
Até que ferveu a guarapa.
Foi na eleição de 1922, quando o baiano ousou servir como fiscal maragato, no distrito de Antônio Prado (na época, quem não era gaúcho era chamado de baiano). Depois disso, ele tinha que dormir de olho aberto e de costas pra parede.
Um amigo ficou sabendo que os borgistas tinham convocado o bandoleiro Paco pra capar o forasteiro. O amigo chamou um encontro secreto, de madrugada, no meio duma encruzilhada.
“Bá”, pensou o Cassiano. “Isso é arapuca”.
Mas foi mesmo assim. Senão com que cara ele ia olhar pro próprio bagual?
Por via das dúvidas, enquanto marchava solito na silente madrugada, como se dizia na gíria, ele ia se despedindo das lembranças marcantes de suas aventuras guascas: mateadas conspiradoras na neve; o vento minuano, que trazia de outras dimensões a sedução e a ameaça de revoltas inexoráveis; costelões eternos na fazenda de um veterano; noites de truco em que se ganhavam relógios e se perdiam mães; sonetos de Paula Ferreira, que apareciam no jornal e todo mundo achava que fosse uma mulher, a Paula, e suspiravam, até que num sarau irrompeu um qüera que puxou o relho e exigiu respeito:
— Meu nome é Astrogildo de Paula Ferreira, nada de a Paula Ferreira!
— Que tá rindo, seu Cássio? — perguntou o amigo, quando o Cassiano chegou no ponto de encontro.
Talvez por ter chegado rindo, talvez porque descobriu que não era, enfim, uma armadilha aquele encontro, talvez porque simplesmente não queria ser mais um pescocinho afeitado pelo facão de três listras do bandoleiro Paco, o fato é que o Cassiano Ricardo decidiu voltar pra Chaminé do Progresso e se dedicar a aventuras menos arriscadas. E foi assim que ele virou poeta modernista paulistano, em vez de gaúcho.
Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.
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