Caxias do Sul 08/05/2024

Aprendizados em São Roque da Goiabeira

Período da infância no interior serrano, quando o futuro escritor resolveu mergulhar definitivamente nos livros
Produzido por José Clemente Pozenato, 26/08/2021 às 08:37:34
Foto: Marcos Fernando Kirst

A colônia de Santa Teresa, onde nasci, esgotou suas terras à venda. Mas, como o projeto de atrair agricultores dera bons resultados, a Prefeitura de São Chico o expandiu para o lado do Arroio Goiabeira, que tinha às suas margens terras férteis e de futuro. Nesse local foi erguida a capela de São Roque e, atrás dela, uma nova escola municipal, para atender à demanda que crescia.

Sempre atento a novas possibilidades, não deu outra: meu pai pediu transferência para a Escola São Roque e se mudou para a Goiabeira, onde construiu uma casa nova. Em anexo, fez o paiol, o chiqueiro, o galinheiro e a estrebaria.

Já éramos seis irmãos, registrados em fotografia no alpendre da casa. Apareço nela com um livro na mão, intitulado “Crestomatia Cívica”, de Radagásio Taborda. Era uma antologia de textos de teor patriótico, que meu pai encomendou, pelo correio, da Editora O Globo, de Porto Alegre. Era o livro que eu estava lendo quando foi tirado o “retrato”, como a gente chamava a fotografia.

“Retrato” da família Pozenato em 1946, o futuro escritor à esquerda, já apegado aos livros. Na pose, o casal Jerônimo e Deotilia, com os filhos, a partir da esquerda: José Clemente, Neli (no colo), Gilson (em pé, ao centro), Inês e, ao fundo, Teodorico e Anísio. (Foto: Álbum de família)

A Segunda Guerra Mundial havia terminado há pouco, e todos falavam que tinha chegado ao fim a “carestia”, palavra de forte presença em nosso cotidiano. Na biblioteca de meu pai havia almanaques e revistas com notícias da guerra. De uma delas lembro em detalhe: numa fotografia apareciam dois soldados norte-americanos, fardados e fumando, sorridentes. Ao pé do retrato vinha uma legenda mais ou menos nestes termos: “Esperando tranquilos antes de entrar em combate”. E lembro que me perguntava: como é que eles estão tranquilos se podem morrer a qualquer hora?

Meu pai acompanhava o andamento da guerra na venda do João Santos, aonde ia duas vezes por semana, ao menos. O João Santos era o único na redondeza que possuía rádio. Um rádio com bateria de caminhão, que ele mandava carregar na vila de São Chico. Na realidade eram duas baterias, como me explicou meu pai, para ter uma de reserva enquanto mandasse alguém a cavalo até a vila para recarregar a outra.

Nessas idas à venda do João Santos, que ficava a dois quilômetros de nossa casa, vez por outra eu era levado na garupa do cavalo branco. A venda ficava a meio caminho entre São Roque e Santa Teresa, em posição estratégica para atender a freguesia dos dois lados. Assim fiquei conhecendo seu João Santos, que tinha uma barriga grande, e o caixeiro, que se chamava Alcides. Na venda tinha de tudo, até açúcar branco, caramelos e chocolate.

Quando terminou a guerra, meu pai me levou até a venda do João Santos. O rádio havia noticiado que o presidente Getúlio Vargas ia fazer um discurso no programa A Voz do Brasil. Era quase escuro quando chegamos. O programa começava sempre às sete horas da noite. Do discurso só lembro as palavras Iniciais: “Brasileiros e brasileiras! Trabalhadores do Brasil!”. Ditas numa voz mais fina do que grossa. Não sei se por causa do rádio ou porque a voz do Getúlio era mesmo essa. Do resto não lembro. Ou era difícil demais para mim, ou caí no sono.

Meu pai sempre teve grande admiração por Getúlio Vargas, a partir de um episódio que ele volta e meia relembrava. Quando servia no quartel de cavalaria em Quaraí, o comandante avisou que no dia seguinte, às dez horas, estaria no quartel o Presidente do Estado, Getúlio Vargas. O sargento chamou o destacamento e deu as ordens de praxe: “Deixem as fardas em dia, com todos os botões, lustrem as perneiras, escovem os cavalos, aparem as crinas, alisem os cascos!”.

No dia seguinte, na hora marcada, todo o batalhão se pôs a desfilar, disciplinadamente, diante do palanque onde estavam Getúlio Vargas e as autoridades do quartel. Nisso começou a pingar, chegando a chuva, e alguns soldados “se coçaram” para pegar a capa que vinha na garupa do cavalo, na “mala da capa”. O sargento então berrou para a tropa:

- Em forma! Sem capa! O comandante maior está sem capa!

Todos olharam para o palanque e, de fato, viram que Getúlio Vargas estava perfilado, sem se proteger da chuva, como se nada estivesse acontecendo. Depois fiquei sabendo que Getúlio fez essa visita a todos os quarteis do estado, preparando a Revolução de 30.

Nesse período da guerra mundial foi que eu mergulhei nos livros. A ponto de minha mãe me pedir que eu não ficasse tanto tempo lendo: “assim tu vais estragar a vista”, me dizia ela. À noite, só se podia ler com a luz do lampião a querosene, ou da “pixirica”, como a gente chamava a lamparina a querosene.

Eu dominava tanto a leitura que meu pai me encarregou de ajudar dois irmãos meus. Aconteceu então uma cena que ficou nos anais da família. Estávamos, cada um dos três, com o mesmo livro de leitura na frente. Eu ia lendo as palavras e os dois iam repetindo. Quando percebi que eles não liam, só repetiam, eu disse, fingindo estar lendo no livro: “Um papagaio”. Os dois repetiram: “Um papagaio”. Continuei: “Dois papagaios”. E eles: “Dois papagaios”. Nisso, meu pai estava passando perto da mesa e percebeu a brincadeira. Deu uma risada e ficou do meu lado:

- Agora deixa os papagaios lerem sozinhos!

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

Da série “Memórias de São Chico”, leia outro texto AQUI