Caxias do Sul 19/04/2024

Os parentes bem longe

Distâncias coloniais impunham silêncios profundos entre os membros das famílias
Produzido por José Clemente Pozenato, 12/08/2021 às 07:51:38
Foto: Marcos Fernando Kirst

Uma carência na minha infância – que eu sentia como carência – era a de não conhecer de perto os parentes da família a não ser, é claro, meus irmãos e irmãs. Não conheci avós, com exceção do vovô Guilherme, nem tios, nem primos.

Acontece que meus pais, assim que se casaram no município de Osório, mudaram-se para a vila de Santa Teresa, em São Francisco de Paula, onde ele havia comprado dois lotes de terra. Em Santa Teresa a prefeitura tinha implantado um projeto de colonização, por ser uma área de mato e não de campo aberto como na maior parte do município, permitindo o cultivo agrícola.

Para ali migraram famílias de origem alemã, procedentes na sua maioria da região de Nova Petrópolis, e de origem italiana. Destas, a maior parte era de Santa Lúcia do Piaí, pertencente a Caxias, e da Barra do Ouro, onde havia também uma colônia de italianos, alemães e poloneses, e hoje distrito do município de Maquiné. Antes deles haviam migrado para lá açorianos de Santa Catarina, dos quais descendia minha avó materna.

Ainda lembro os sobrenomes da maioria das famílias que migraram para São Chico. Entre as Alemãs: Lauxen, Ritter, Ternus, Schmitt, Paffratt, Schwaab e outras. Entre as Italianas: Lazzarotto, Barcarolo, Martini, Rech, Casagrande, Tomasini, Pioner, Bonatto, Mazzurana, Silvestre, Muraro… E havia também os “turcos”, como eram chamados os sírio-libaneses. Dois deles tinham casa de comércio; um era o Elias Scander e o outro o João Gantus, o “João Turco”. E também negros, como nossos “vizinhos de porta”, o seu Felicício e a dona Angerca.

Com a mudança para Cima da Serra, ficamos sem contato com as famílias dos avós, tanto paternos quanto maternos. A gente sabia os nomes de todos eles, mas as distâncias e a dificuldade de viajar impediam o encontro pessoal. Era um mundo mais velho que o de hoje...

Do lado materno, meu avô se chamava Antônio da Silva, que minha mãe dizia ser filho de uma índia caçada no mato, e a avó se chamava Maria Carlota dos Santos, de origem açoriana, como descobri mais tarde. Com as raríssimas cartas que eram trocadas, ficamos sabendo que a família toda havia se mudado para Palmares (hoje município de Palmares do Sul), para trabalhar nas lavouras de arroz. Ficaram mais longe ainda do que estavam antes E nunca se concretizou o sonho de minha mãe, de a gente ir a cavalo até Osório e lá tomar o trem para Palmares. E essa estrada de ferro Osório-Palmares entrou para a história, merecendo investigação.

Por parte de pai, meu avô se chamava Guilherme Pozenato. E a avó tinha o nome de Maria Madalena Debastiani, nascida em Beluno, na Itália. A primogênita da família era a tia Virgínia, que não mantinha correspondência. Sabia-se que ela morava em Caxias. Meu avô Guilherme, ficando viúvo, mudou-se com os filhos para Cacique Doble, na época um distrito de Lagoa Vermelha. Com eles a correspondência era mais assídua. De lá, um dos tios se mudou para o Paraná e outros dois para Santa Catarina. Era a época da forte migração interna das colônias italianas e alemãs para o norte do estado e para os estados vizinhos. O tio Antônio fez o percurso inverso, voltando a morar em Caxias do Sul.

Com todas essas andanças, as cartas, que já eram raras, começaram a minguar. Minha mãe então nos confortava dizendo: “se não vêm notícias, é porque todos estão bem; notícia ruim sempre vem voando”.

Um resultado desses deslocamentos foi o de meu avô Guilherme ter ido passar um tempo em nossa casa. Eu devia ter uns oito ou nove anos na época. Não preciso dar aqui detalhes de sua figura: ela está desenhada, em detalhes, no personagem Aurélio Gardone, do romance “O Quatrilho”. Aurélio era o nome do único irmão de meu avô, que teve mais quatro irmãs.

Os meus bisavós paternos emigraram da Província de Verona já casados e se estabeleceram na colônia de Nova Vicenza, hoje município de Farroupilha. Perto de Santa Rita receberam um lote de terras para ser pago a prazo, como determinava a lei para os imigrantes. Ali tiveram seis filhos: dois meninos e quatro meninas. Por fatalidade, faleceram os dois, por causas nunca identificadas pela família, antes de meu bisavô quitar o pagamento das terras. A consequência direta foi que os filhos todos, ainda crianças, ficaram sem propriedade nenhuma, e foram acolhidos e criados pelos vizinhos.

Guilherme e Aurélio, os dois mais velhos dos irmãos, como não tinham terra para cultivar, foram buscar outro tipo de trabalho. Foi assim que meu tio-avô Aurélio se tornou carreteiro, morrendo num acidente, próximo a Ana Rech, como consta dos registros. E meu avô Guilherme virou tropeiro, trabalhando para uma loja da vila de Nova Vicenza. Viajava com os cargueiros de mulas até Barra do Ouro, levando queijos, salames, vinho, e de lá trazia açúcar, rapadura, cachaça e banana. Depois de casado, e já com alguns filhos, decidiu mudar-se com a família para o município de Osório, que na época tinha o nome de Nossa Senhora da Conceição do Arroio, indo instalar-se num lugar chamado Mundo Novo.

No Mundo Novo foi que meu pai Jerônimo conheceu minha mãe Deotília da Silva. Começava ali, de fato, um mundo novo!

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

Da série “Memórias de São Chico”, leia outro texto AQUI