Caxias do Sul 26/04/2024

Antigos saberes de cozinha

Um resgate de antigas tradições dignas de permanecer vivas no museu da memória
Produzido por José Clemente Pozenato, 19/05/2022 às 09:34:50
Foto: Marcos Fernando Kirst

Uma pesquisa de campo foi realizada nas duas margens do Rio Pelotas, que faz divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, na virada do século, pelo IMHC da UCS. Foram encontradas muitas preciosidades nos hábitos culturais dessa região, dignas de figurar no museu da memória.

Uma dessas pérolas é a dos saberes escondidos no espaço doméstico, sob o controle da mulher. Alguns muito específicos foram relatados por uma velha senhora de Bom Jesus, numa saborosa e bem humorada entrevista, de que são transcritos alguns trechos no mínimo curiosos.

1 - Café de chocolateira

A chocolateira - chiculateira, na linguagem da entrevistada -, era uma vasilha feita de folha de flandres, usada para esquentar água e fazer café, sem ter nada a ver com o chocolate. Essa é a definição do dicionário Houaiss. A descrição da sábia senhora é esta:

A chiculateira tinha o embaixo mais largo, e em cima afinava. Se comprava um latão de abacaxi, e com ele se fazia a vasilha. Tinha que pegar com um pano, né, ou mandava botar uma asa. Tinha um tal de Tonico, que sabia botar asa. A gente sempre levava pra botar asinha também nas latinhas de massa de tomate pras crianças tomar café.

Pra fazer o café, se botava a água esquentar. Quando a água começava a rodear na folha, se colocava o pó. E quando ela fervia, o pó ia todo pro fundo da lata. Se podia ver na caneca que não tinha pó nenhum em cima da lata.

O açúcar era posto já na xícara, para não adoçar aquele pó no fundo da lata. Se colocava o açúcar já na xícara, pra tomar o café.

Se a gente botar o pó com a água já fervendo, o pó não desce pra baixo da chiculateira. Então se botava uma brasa de fogo ali em cima, e o pó descia tudo pro fundo. A ciência é esta: antes de ferver, quando a água começa a rodear um pouquinho, a gente coloca o pó. Ele já vai arrodeando assim, e vai indo, vai descendo, e aí não precisa o tição.

2 - Velas de sebo

As velas de sebo eram uma alternativa de menor custo que o lampião a querosene para se ter luz dentro de casa à noite. Luz elétrica, nem se sabia o que era. Além disso, as velas tinham papel essencial em cerimônias de cunho religioso.

A arte de fazer velas de sebo exigia muita habilidade artesanal, e também muita paciência, como explicou nossa competente entrevistada:

Quando a gente carneava uma rês, já tirava separado esse sebo próprio só pra fazer vela. Sim, porque se for aquela graxa da carne, ela é uma graxa macia, mole. Não presta pra fazer vela. Tem que ser o sebo duro perto do rim, do bucho. O sebo então é tirado já separado, que é o sebo de fazer vela.

Para fazer as velas eram usadas formas, mandadas fazer num latoeiro. Cada forma tinha de seis a oito canudinhos, com uma ponta aberta e um pequeno furo na outra ponta. Um pavio era enfiado pelo cano, ficando preso na pontinha estreita: “com aquela beiradinha bem ajeitada com o pavio não tinha perigo de escorrer o sebo fora”.

Era então despejado o sebo derretido até encher os canudos da forma. Depois de cheios, eram deixados no ar fresco, para secar. Para tirar depois as velas de dentro dos canudinhos, se passava uma água quente por fora da forma: “com isso frouxava um pouquinho por dentro, e podia puxar, que saíam direitinho as velas”.

O pavio, explicou a entrevistada, era feito de pano. Em geral de um pedaço de lençol, não muito gasto e fraco. Rasgava-se o pano, que tinha que ser muito bem torcido, para poder ficar no meio da vela. Esse pavio podia ser de tecido de cor, do pano que houvesse disponível.

Outros detalhes foram registrados. A quantidade de velas produzidas era de, em média, uma dúzia por meio quilo de sebo. Quando havia bastante sebo – sete ou oito quilos –, era usado o tendal (isto é, o varal de secar charque) para pendurar as formas até as velas secarem. “Em tempo de chuva, a gente pegava pra fazer pavios, e ia guardando, porque fazer velas era serviço pra dia de tempo bom, E no dia em que dava para fazer vela, era só vela que ia sair”!

3 - Torrando café

O café era comprado em grão, e chegava num cargueiro, um animal de carga. Aí a dona da casa tinha que pôr aquele café a secar no sol, e em seguida torrar no torrador. Depois queimava açúcar mascavo numa panela, misturava nesse café torrado, e socava no pilão. Feito isso, peneirava numa peneirinha bem fina, e colocava o pó numa lata, que era guardada para fazer o café na “chiculateira”.

Perguntada se ela sentia saudade dessa época, a senhora respondeu:

Não dá saudade. Era muito serviço, muito serviço. A gente não tinha tempo de pensar. A noite tava chegando, e o serviço ainda era muito pra fazer. E hoje a gente tem uma vida descansada, sentada. Não dá pra ter saudade, porque a saudade é pesada. A saudade é uma coisa doída. E hoje a gente tem uma vida boa, nem tem saudade do trabalho que passou...

Esse tempo pode não ter deixado saudade, mas com certeza deixou muita sabedoria!

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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