Caxias do Sul 25/04/2024

Air Force One e o Tuk-Tuk

A confusão do trânsito de Bangalore é uma boa analogia com a tumultuada corrida presidencial aqui
Produzido por Gustavo Miotti, 27/10/2020 às 06:14:02
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Apesar de ter vivido quase cinco anos na terra do Tio Sam e pensando que o processo de aculturação tivesse terminado, algumas coisas ainda me surpreendem na cultura deste país.

Os americanos, por serem mais fechados e individualistas, se expressam de forma muito mais reservada do que nós, brasileiros. Por exemplo, é raro encontrar alguém com som alto no carro ou, até mesmo, em um parque ou na praia. Fones de ouvido vendem, infinitamente, mais do que caixas de som.

Aqui, adultos não tocam outras crianças ou bebês bonitos e fofos que passam por elas. Nunca vi um amigo dividir o mesmo drink, em tempos pré-pandemia. Festas, independentemente se estiverem animadas, têm horário pré-fixado para terminar.

Acho que é por isso que todos os americanos que conheço, que foram para o Brasil, tiveram experiências muito agradáveis em relação ao calor do nosso povo. Apesar de todas as nossas dificuldades e mazelas, somos, na grande maioria, um povo de sorriso fácil e muito acolhedor para o estrangeiro.

Os gringos, por sua vez, raramente expressam suas preferências clubísticas, musicais ou políticas como nós. Deu para ver bem isso na eleição presidencial vencida por Donald Trump em 2016. Tinha muita pouca propaganda política nas ruas e as pessoas quase não falavam da eleição. Entretanto, a eleição deste ano, que foi apelidada por diversos analistas políticos como a mais importante da história da América, mudou totalmente isso. Nota-se um engajamento muito grande da população, mas, junto, também uma enorme ansiedade paira no ar da América. Estamos vivendo uma eleição de visões muito diferentes sobre o que a América representa para si e para o mundo.

Aqui na Flórida, um estado muito importante para a eleição, tem a chamada batalha das casas: umas com propagandas a favor do atual presidente republicano e outras apoiando o candidato da oposição, Joe Biden. Tenho um vizinho que vai votar no Biden, apesar de não ter propaganda na casa dele. Ele passa quase todos os dias de bicicleta e com enormes varas de pescar. Engraçado, que sempre me cumprimenta da mesma maneira, levantando a mão e dizendo um econômico: “Dia”! Até parece uma das cenas daquele filme “Truman Show”, com o Jim Carrey, onde tudo se repete, todo o dia. Porém, desconfio mesmo que ele seja um veterano de alguma guerra, pois aparenta ter um pouco mais de 50 anos e parece estar aposentado. Muitos veteranos elegem a Flórida, como lar para tentar esquecer os traumas das guerras, dessas tantas que esse país já lutou.

No último sábado, eu estava relaxando no sofá da sala, quando comecei a ouvir buzinas, gritos e música alta. Corro para fora de casa e eu, ingenuamente, achei que já tivesse visto o suficiente de estranheza em 2020. Meu vizinho está mostrando suas brancas nádegas e apontando o desrespeitoso dedo do meio para uma carreata de apoiadores do Trump.

Meio sem saber o que fazer, entro de volta e observo daí a batalha dos palavrões vindo de ambos os lados. Meu pobre vizinho enlouqueceu, pensei eu, mas, por surpresa, fui saber que essa prática é uma maneira usada por aqui de expressar desprezo por algo ou alguém.

Num estado que prende quem estiver com uma lata de cerveja aberta no carro, independentemente de ter tomado ou não, achava que mostrar o traseiro pelado levaria a consequências legítimas. Engraçado, que a Lisi encontrou o vizinho indo pescar no outro dia e ele finalmente falou algo mais. Agradeceu o meu apoio na demonstração, que, na verdade, não entendo como foi. Não sabe ele o quanto fiquei espantado.

O ato, chamado de mostrar a “lua”, surgiu na Idade Média na Inglaterra, mas ganhou popularidade nas universidades americanas nos protestos contra a Guerra no Vietnã. Lembro que são tão comuns esses desencontros culturais. Por exemplo, no Oriente Médio, mostrar a sola do sapato é extremamente ofensivo. Como no Brasil, o sinal de “ok” com os dedos que os americanos fazem comumente, significa uma coisa bem diferente. Numa das idas do presidente Ronald Reagan ao Brasil, cometeu a gafe de mostrar o sinal para repórteres saindo do Air Force One, o avião presidencial.

Falando de presidente, após a eleição de 2016, Donald Trump fez uma turnê por algumas cidades do país para agradecer os votos na eleição e uma das cidades escolhidas foi aqui. Pensei que seria algo que o Bernardo jamais esqueceria, ver o presidente, independentemente de quem fosse.

Apesar de ser inverno, o sol da Flórida nos castigou nas mais de três horas de fila para entrar no hangar do aeroporto, onde foi o comício. Embora as adversidades, o calor, a espera e as filas de security checks, os fãs do presidente entram em euforia quando o Air Force One pousa e a porta do avião se abre e Trump desce como um verdadeiro rock star.

Ao fundo toca, a todo volume, a canção patriótica “Deus abençoe a América”. O discurso do presidente não teve nada de novo, era uma cópia e cola dos discursos quando foi candidato, criticando a imprensa, imigrantes e o México. Infelizmente, Trump foi, durante todos esses cansativos quatro anos, um presidente que nunca deixou de ser candidato, focou apenas na sua base eleitoral e não no país como um todo.

Essa semana, conversei com um velho amigo republicano, o Mike que mora na bela San Francisco. Ele recém se aposentou da função de executivo de uma grande indústria de equipamentos de diagnósticos da área de saúde. Agora, tem focado suas energias em projetos de empreendedorismo social, ajudando os mais desfavorecidos para abrirem seus próprios negócios.

Mike foi meu colega de mestrado e nunca escondeu ser um republicano fervoroso, que tem como seu grande ícone Ronald Reagan. Não me lembro de tê-lo visto sem o pin do partido no seu blazer, que sempre usa. Me disse que, pela primeira vez na vida, votou em um candidato democrata. “Qualquer coisa, menos o Trump”, me confessou.

Segundo ele, Trump transformou seu partido em algo que não representa em nada os ideais de liberdade promovidos por Reagan. Mike, porém, me conta uma boa notícia: que, ao se aposentar no ano passado, escolheu receber o valor do pacote de saída em ações da empresa de diagnósticos de saúde. E, por sorte dele, não é que a Cepheid se transformou num dos maiores fabricantes de testes para a Covid-19 nos Estados Unidos e teve suas ações valorizadas em mais de 110% este ano?

Recordei de uma aventura que tivemos e me faz lembrar novamente das diferenças nossas com os americanos. Num dos módulos do mestrado que fiz com o Mike em Bangalore, na Índia, passamos dez dias no campus da Universidade. As acomodações eram bem acanhadas, mas limpas e não havia as facilidades do ocidente, como TV, minibar. Todas os dias, acordávamos antes do amanhecer para nos encontrarmos no lindo jardim do campus para fazer aulas de yoga, antes de irmos para a sala de aula estudar filosofia indiana e seus impactos no mundo dos negócios, sob a ótica indiana.

Apesar do calor e umidade, lá estava o Mike, com seu pin e blazer. Depois de passar dez dias comendo comida vegetariana indiana, pois não era permitido qualquer tipo de carne no campus, nós já não aguentávamos mais, precisávamos de uma boa proteína. Resolvemos jantar fora e fomos procurar algum restaurante que servisse carnes.

Vieram também o colega brasileiro Ricardo e duas colegas americanas, a Jill e a Jody, que também estavam desesperadas por um pedaço de carne. Na universidade, nos informaram que havia um bom restaurante num shopping center. O problema era que, com o caótico trânsito, levaria uns 40 minutos usando um tuk-tuk para chegar lá, ou mais de 1 hora e meia de carro. A fome era tanta que resolvemos ir do modo mais rápido, mas muito mais inseguro. Andar de tuk-tuk na Índia é parecido com uma volta na montanha russa, mas com muito barulho de buzinas e fumaça da poluição do trânsito pesado.

Chegando vivos no restaurante, ficamos felizes também em ver os pratos sendo servidos nas outras mesas, pareciam deliciosos, principalmente os suculentos filés. Mas nem fazia dez minutos que estávamos ali, vimos os cozinheiros e os garçons correndo de forma desesperada para fora do restaurante com caras de apavorados. Sem nenhuma hesitação, eu o Ricardo fizemos o mesmo.

Quando estamos já descendo a escada rolante, vemos que os americanos não tinham vindo. Sem pensar, volto para o restaurante, vejo que tem fumaça saindo da cozinha e os gringos estavam começando a se mover. Eu grito para eles correrem para fora, e assim fizemos. Havia pego fogo na cozinha do restaurante. Todo o Shopping foi evacuado e lá se foi o nosso sonhado jantar.

Depois, questionei o porquê de eles não terem saído correndo, e me disseram que estavam aguardando as instruções do protocolo de segurança, que obviamente nunca vieram. Isso me fez refletir no grau de dificuldade que o modelo mental do americano tem de lidar com o imprevisível ou o impensado. Tendem a responder da maneira como foram treinados, e nem sempre funciona.

A confusão do trânsito de Bangalore é uma boa analogia com a tumultuada corrida presidencial aqui. Mas espero que, desta vez, os americanos não me surpreendam e voltem a escolher um candidato que traga um pouco de paz, estabilidade e serenidade, e esse é Joe Biden!

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