Caxias do Sul 12/05/2024

A Páscoa e seus símbolos

Ritos e símbolos de civilizações antigas foram incorporados à tradição cristã
Produzido por José Clemente Pozenato, 06/04/2023 às 08:22:47
Foto: Marcos Fernando Kirst

Os estudos de antropologia histórica têm mostrado que a Igreja, à medida em que catequizava os mais diversos povos e etnias, levava a eles seus ritos e símbolos. Mas também ia incorporando à sua liturgia ritos e símbolos enraizados em cada cultura.

Os dois eventos cristãos mais marcantes, o Natal e a Páscoa, foram também os dois que mais foram enriquecidos em seus rituais, a partir do século X. No Natal, o símbolo mais marcante é, sem dúvida, a árvore. Na Páscoa, os ovos e o coelho ocuparam o espaço simbólico em definitivo.

A maior parte das tradições de cunho folclórico, em especial no Norte da Europa, estava ligada à mudança das estações. O dia de Natal coincidia com o forte do inverno nesse hemisfério, e a celebração da Páscoa ocorria no início da primavera. Transferir os símbolos do renascimento primaveril para serem símbolos da ressurreição de Cristo foi um processo realizado sem conflitos.

O coelho, na primavera, saía da toca onde ficara hibernando para iniciar a fase de reprodução. Também os ovos sinalizavam um início, ou reinício de vida, ao romperem a casca e mostrarem um ser vivo lá escondido, como se estivesse debaixo da campa do sepulcro. Na região germânica havia o ritual de pintar ovos para serem dados de presente no final de cada inverno, como uma maneira de desejar uma feliz volta à vida.

Não é difícil entender por que esses rituais pagãos ganharam novo significado dentro do cristianismo, até porque uma maneira de atrair a atenção das pessoas em processo de evangelização era o de não romper de todo com seus usos e costumes, também no plano dos símbolos e crenças.

Um exemplo disso é o símbolo do peixe, que tem raízes no evangelho, em vários de seus episódios, a começar por Pedro o Pescador, e é visto na tradição popular como um ser capaz de multiplicar a vida de modo infindável. A celebração da Semana Santa com o convite ao consumo do peixe tem um profundo cunho mitológico, além do religioso.

Outro exemplo da mescla da cultura popular com a religiosa pode ser encontrado no duplo provérbio de origem vêneta, em que é feita a previsão do tempo na semana da Páscoa:Sole nei rami, piova nei óvi e o seu reverso, Piova nei rami, sole nei óvi. Traduzindo: se der sol no domingo de Ramos, chove no domingo de Páscoa, e vice-versa: chovendo no domingo de Ramos, o sol abre no domingo de Páscoa. Nem sempre a previsão funciona, tanto que há provérbios também ligando a previsão do tempo como uma forma de mentira...

No meu imaginário, e também nos meus sentidos, a Páscoa se associa com o outono, como ocorre em nosso hemisfério. Não é celebração de um reinício de vida, como a do coelho, mas a degustação de um fruto maduro, como digo nestes meus versos sobre o outono (e, portanto, sobre a Páscoa!):

Ir para as sombras, sim,

mas sabendo pelos sinais

quando a hora se aproxima

dos frutos maduros e dourados.

E sabendo-se a hora

poder concentrar-se no sumo

- como o fruto, o pão assado –

cientes de que tudo,

quando doura, no limite

de si e de sua grandeza

é afinal chegado.

Um final que pode ser também um reinício.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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