Caxias do Sul 25/04/2024

A nada usual vida de Yoani

Voz dissonante aponta a situação orwelliana da ilha caribenha
Produzido por Gustavo Miotti, 12/11/2020 às 18:50:54
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Nos saudosos anos oitenta, eu tinha uma professora de História que se chamava Sônia. Recordo muito bem que ela era uma comunista de carteirinha, daquelas que gostavam de usar roupa vermelha para mostrar sua preferência ideológica.

Ela defendia com unhas e dentes a tão sonhada igualdade entre os homens, que somente um utópico regime poderia trazer. Eu vinha de uma família que sempre foi mais próxima às ideias de centro-direita, apesar de o meu pai ter flertado com algumas ideais do Brizola, principalmente as ligadas ao poder transformador da educação, das quais ele definitivamente foi um claro produto.

Apesar da beleza da utopia de igualdade social da teoria de Marx, sempre acreditei no princípio central do liberalismo, de que o principal motor de transformação de um indivíduo é pelo seu esforço, seja através de estudos ou trabalho, e reconhecia nos meus pais o claro exemplo disso. Eu tentava argumentar isso com ela, mas um pobre garoto de 14 anos não tinha uma retórica suficientemente sofisticada para convencer os colegas; muito menos ela, obviamente.

A professora Sônia adorava falar das aventuras de Che pela América Latina e pela África, e da Revolução de Fidel, que tinha transformado uma pobre ilha explorada pelos Estados Unidos, o eterno grande vilão, num modelo a ser seguido pelos demais países da América Latina. A Guerra Fria estava ainda em full-force e recordo bem que um dos meus maiores temores era um eventual conflito nuclear entre as superpotências e suas nefastas consequências.

Passaram-se quase 35 anos das aulas da professora Sônia, mas, talvez por causa dela, acabei acompanhando o drama da vida em Cuba, através de leituras, palestra e viagens à ilha. Pensei em escrever sobre isso, mas tenho certeza de que, para o leitor, será muito mais rico conhecer a realidade do país através da história de alguém que vive lá. Por isso, aproveitei o tempo que a pandemia nos deu para conversar com a protagonista desta história, Yoani Sanchez.

Na mesma época em que as histórias da professora Sônia me perturbavam, no outro lado da cortina e na versão caribenha do comunismo, Yoani vivia sua adolescência como eu. Yoani não é um nome usual em Cuba e, de longe, a história que vou contar também é uma história comum, afinal, viver em Cuba não é nada ordinário. Yoani me falou sobre a vida dela, o passado e o que se pode esperar do futuro de Cuba.

Nos últimos anos, ela se revelou como uma das principais vozes da dissidência ao governo cubano, apesar de se dizer apolítica. Na conversa, noto logo que ela trata com muito carinho as palavras, afinal, ela estudou filologia, o estudo das escritas, na Universidade de Havana. Ela usa das palavras, sua principal arma, contra o regime castrista, através de seu blog e, mais recentemente, pelo diário digital 14ymedio.com, no qual dissemina uma versão da realidade da vida em Cuba, um contraste à ilusória ilha da imprensa oficialista.

Ela me fala sobre como era viver do outro lado da cortina, sobre o período anterior à queda do Muro de Berlim. Yoani tinha 14 anos naquele ano capital para Cuba, e recorda desse tempo com certa nostalgia, quando as pessoas tinham uma vida tranquila, decente e previsível, com o salário que ganhavam.

Foram os anos “dourados” da utopia comunista, mas Yoani comenta que Cuba vivia numa bolha artificial e o ar dentro dessa bolha vinha dos enormes subsídios da União Soviética, que promovia a ilha como uma vitrine para hipnotizar as esquerdas da América Latina, principalmente pelas iniciativas na área social. Cuba exportava para o bloco comunista açúcar e tabaco, e em troca, recebia enormes subsídios, com os quais importava praticamente tudo.

A iniciativa privada, tanto a indústria, serviços e agricultura, haviam sido totalmente estatizadas. Para se ter uma ideia da extensão da interferência do estado na economia, profissionais como cabelereiro e manicure trabalhavam para o estado.

A equipe de redação do diário digital 14ymedio.com na sala do apartamento de Yoani (de óculos)

Yoani lembra que os enormes subsídios faziam o país viver uma realidade artificial e anômala e que as pessoas tinham um nível de vida totalmente desajustado com o que a economia produzia. Mas, como frisa Yoani, nada disso era de graça, como se gabava Fidel.

O maior preço era e continua sendo a falta de liberdade. Ela lembra que o marxismo postula o utópico conceito de criação de um novo homem ou uma nova mulher na sociedade e, para isso, promove a corrosão do papel do indivíduo e da família, sendo substituídos pelo estado comunista. Isso teve um efeito nefasto, especialmente numa sociedade latina como Cuba, que era centrada no núcleo familiar.

Logo no início da revolução, foram criados os Comités de Defensa de la Revolución (CDR), que ainda hoje são uma das maiores armas de preservação do regime, onde os líderes de bairros exercem um poder de controle e vigilância tanto da vida pública como privada dos habitantes. Filhos denunciavam seus pais se fizessem atividades consideradas subversivas ao regime, pois viam em Fidel seu verdadeiro pai ou um semideus.

Hoje ainda existem mais de 200 mil destes pequenos “quartéis domésticos”, que intimidam e até mesmo abusam quem critica o governo, que são acusados de serem antirrevolucionários ou agentes do império ianque. Yoani fala daqueles anos como tempos orwellianos, quando o estado tinha o controle da “verdade” através do domínio total dos meios de comunicação e do uso de delatores, informantes e da polícia política. O CDR continua sendo responsável pela mobilização política e por fazer os membros de seus bairros atenderem aos comícios e paradas políticas. Nesses dias, batem de porta em porta, chamando a população para irem aos eventos.

Em 1991, com o fim do comunismo na Europa, Moscou cancelou todos os subsídios a Cuba e o país se viu sem fornecimento de petróleo e demais produtos industrializados. O PIB de Cuba chegou a desabar mais de 40% nos três anos seguintes ao fim da ajuda soviética.

Fidel apelidou essa época de “período especial em tempos de paz”, que durou até o início dos anos 2000. Yoani se irrita com o uso dos eufemismos, que são tão comuns nos regimes comunistas. Através da manipulação da linguagem, o comunismo manipula e suaviza a dura realidade e trata com hipocrisia a miséria e a fome.

Fidel, desesperado por obter uma moeda forte, abre o país para investimentos estrangeiros na área do turismo, podendo assim manter um relativo controle sobre a população. Também foram permitidas algumas profissões liberais, mas essas mudanças não foram suficientes para prevenir o colapso.

El Malecón, Havana

Yoani fala das distorções causadas na sociedade durante esse período, como prostituição escancarada e profissionais com conhecimento e alto nível de educação e com domínio de línguas estrangeiras, como médicos e engenheiros, que passaram a ter empregos como garçons e motoristas de táxi em serviços para turistas.

Assim, novas bolhas foram criadas, resorts chiques de bandeiras europeias, cheios de turistas com ampla fartura e excesso de comidas e bebidas contrastavam, do lado de fora, com uma realidade de penúria e escassez; algo impensável, especialmente no mundo do comunismo. Enquanto nos hotéis se tinha energia elétrica permanente através de geradores, os cubanos tinham os longos e diários apagones, que ajudavam a situação alimentar a ficar pior do que já era.

Pela primeira e única vez, desde o início da revolução, protestos espontâneos tomaram conta do malecón em agosto de 1994, no calçadão de Havana, gritando por liberdade. Forças de segurança e o próprio Fidel apareceram para acabar com o protesto com sucesso, mas aquele dia ficou conhecido como o maleconazo.

Yoani diz que Fidel, de forma esperta, utilizava como pretexto para liberar a panela de pressão da sociedade a abertura para os mais insatisfeitos saírem do país. Nos dois meses seguintes, mais de 35 mil cubanos constroem improvisadas jangadas e cruzam o estreito do Oceano Atlântico com a Flórida.

1994 – Balseros rumo à Flórida

Pessoalmente, Yoani recorda aquele período especial com muita emoção e amargura; diz que foi como se o país retornasse à obscuridade da época medieval. A falta de petróleo afetou fortemente a profissão dos seus pais, a mãe taxista e o pai maquinista de trem. Apesar de terem mantido seus empregos, viram seus salários serem dizimados. Yoani conta que faltava o mais básico e passavam várias noites sem absolutamente nada para comer.

Foi um período traumático, diz Yoani, no qual perdeu amigas que se jogaram ao mar, outras se arriscaram nas jangadas e outras acabaram por se jogar na prostituição como único meio para colocar comida na mesa. Disse que viu a primavera da sua vida, que é a adolescência, passar de uma forma tão árida que não conseguiu desfrutá-la.

O trauma causado pela falta de comida caiu desproporcionalmente sobre as mulheres, que tinham de viver seus dias atrás de encontrar qualquer coisa para alimentar a família, passando longas horas nas filas de abastecimento dos supermercados estatais ou no perigoso mercado negro.

Aquele estado-mãe, único provedor das necessidades, entrou em total colapso e não teve mais condições de fornecer nem alimentos, vestuário, transporte ou mesmo energia. Yoani diz que o período especial levou o país a um abismo moral, sendo que a visão coletiva de país foi brutalmente substituída por um egoísmo de sobrevivência, um verdadeiro “salve-se quem puder”, em que as pessoas roubavam, desviavam, corrompiam e faziam qualquer coisa com o objetivo de sobreviver.

Livro de Yoani Sanchez publicado no Brasil em 2012

Comentei com a Yoani sobre a minha primeira viagem a Cuba, em 1995. Durante aquele período de profunda crise, mesmo vindo de um país campeão em indiferenças, me chocou ver o contraste que vi no país entre o mundo de penúria em que viviam os cubanos e o luxo exagerado do mundo dos turistas nos all-inclusive resorts.

Nas ruas, as vallas, outdoor de propaganda comunista, tentam criar um mundo à parte da realidade, culpando o embargo americano por todas as mazelas da sociedade. Na frente do resort em Varadero, paraíso no Caribe cubano, um enorme outdoor dizia: “O que se arrecada aqui é para o POVO”, tentando assim justificar as indiferenças gritantes.

Nem tanto, Comandante!

Voltando a Yoani, ela comenta que teme que o país esteja à beira de um novo período especial. Diferentemente do primeiro, que teve uma única origem, o fim dos subsídios soviéticos, desta vez são originados de diversas fontes: a crise na Venezuela, que mandava muitos recursos à ilha, o fim dos programas de médicos no Brasil e um recrudescimento do bloqueio econômico pelo governo dos Estados Unidos, diminuindo os valores que os cubanos que moram nos Estados Unidos podem mandar de remessas de dólares ao seu país. Além disso, a Covid-19 atingiu em cheio a indústria turística, que é a segunda maior fonte de divisas.

Yoani mostra, no seu diário digital, que somente pode ser acessado via VPN (servidor para navegação que dificulta o rastreamento de dados por parte dos servidores de internet) na ilha, o lado humano desta conjuntura vivida por lá, dizendo que teme que a dolorosa ferida do período especial reabra.

Não há pior pesadelo para uma nação do que se afastar do trágico passado e depois voltar a encontrá-lo. Na próxima crônica, irei contar mais sobre esta Cuba de hoje, da coragem e das dificuldades que Yoani tem de usar sua palavra livremente e novamente sob os olhos e, principalmente, o coração de Yoani Sanchez.

Fico pensando no que a professora Sônia pensa da Cuba de hoje. Será que, na cabeça dela, o embargo dos Estados Unidos continua sendo a única justificativa para todo o sofrimento do povo? Ou ela acha que a Revolución expirou todos os limites? Não importa mais... Em vez da teoria que ela endeusava, eu prefiro comprar a verdade, que Yoani mostra através de suas palavras.

Mercado Estatal em Havana – 2018 (foto do autor)

Gustavo Miotti, economista, sócio da Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.

mailgmiotti@rollins.edu

Do mesmo autor, leia outro texto AQUI