Caxias do Sul 05/05/2024

A fila do amanhã

Você sabe identificar quais as filas mais importantes que já percorreu na vida?
Produzido por Neusa Picolli Fante, 07/11/2023 às 22:15:43
Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica
Foto: Morgane Coloda

Lá estava eu, na fila pra falar com Deus, pra contar das minhas perdas e como acompanhante de alguém, que representava muitas pessoas, as quais passaram por mim, com a dor que cruzava seus dias. Esses sentimentos se juntavam em algum ponto para tentar dar sentido ao que viviam.

Era a mesma fila e o mesmo Deus que, por meio das várias religiões, se juntava ali. Ouvi relatos de muitas delas sobre a dor dilacerante que experimentavam e, acredite, todas sentiam e queriam compreender por que estavam vivendo aquilo.

No meio desses questionamentos, seguiam seu dia à procura de algo que pudesse oferecer um sentido, um cuidado, uma acolhida, um entendimento.

Filas que nos modificam, que nos surpreendem, que nos presenteiam, que se criam diante de expectativas.

A primeira fila em que me vi, foi a de um capítulo distante da minha vida, foi num sonho, acompanhando meu pai, quando ainda estava vivo, apesar de, na época, não saber que era o final da sua vida. Estava ali a fim de inscrevê-lo para reservar um lugar na fila do céu. Para promover a entrada dele no céu, eu o acompanhava nessa travessia de mundos. Ela era extensa. Ele, com feições tristes, atrapalhadas e cansadas, estava ali ao meu lado na grande fila que, pouco a pouco, andava. Ele sabia que chegara sua hora, e eu também tinha essa consciência. Nessa fila, eu sabia que fazia o meu melhor, mas angustiada porque terminara o tempo dele aqui na terra...

Em outra fila, acompanhei os pais em luto que atendi, que queriam uma palavra, definir um porquê. Estavam vivendo na dor imensa do momento, assim me encontrava na mesma fila sob um olhar diferente. Eu dizia “não vou largar tua mão, estarei aqui e lá contigo, em todas as tuas indagações”. Uma a uma das mães que solicitavam essa fala com Deus as acompanhei, com serenidade no coração e a certeza do alívio das suas angústias. Uma delas me dizia “quero muito chegar lá e falar com Ele pra compreender os porquês da vida, mas sei que, ao chegar, vou entender sozinha, sem Ele precisar falar nada, mas por hora preciso ficar na fila”. A necessidade de compreender por que isso aconteceu estava presente em muitos, ou estavam ali para simplesmente serem acolhidos um pouco mais.

Vi o olhar das mulheres que perderam pela vida ou pela morte: filhos... E jamais pude esquecê-los, jamais os confundiram. Identifico de longe essa fagulha de esperança e tristeza que as torna mais sabedoras do seu caminho. Vi a fresta de sombra que se sobrepunha à luz, o brilho opaco que se faz presente... e isso não significa que falta fé, de maneira nenhuma. A fé está presente e sendo alimentada... Mas o flash de sombra fala da dor, da saudade, da lembrança, do não vivido que se faz presente, do desejo de não deixar findar as lembranças que colorem o dia.

Principalmente, percebi que, no decorrer da vida, dei a mão para algumas pessoas em momentos difíceis da sua existência, seja no profissional ou nos encontros da vida, de mãos dadas com outras dores que apareceram na minha vida, mas ali estava eu pra falar com Deus. Falar pela oração...

Outras filas de que me recordo foram de muito tempo atrás, quando trabalhava comigo a paciência. Sim, houve um tempo que precisei trabalhar a paciência em mim, e isso foi na esquina lá atrás. Quando olho, mal consigo enxergar quando... Era só eu dizer “vou lá” e quando me aproximava, uma imensa fila me esperava. Lembro de uma vez, numa praça de alimentação, onde, sentada, escolhi o lugar em que desejava lanchar. Olhei e estava vazia. Falei umas palavras, me ergui e fui em direção ao local. Quando cheguei, meus olhos se abriram mais para constatar a imensa fila que se formara em minutos... Lembro do sorriso em meus lábios em perceber que, sim, estava exercitando a paciência...

Muitas outras filas fizeram parte dos meus dias. Ricas vivências me acompanharam. Relatei algumas, que constroem o meu amanhã, e que considero significativas, não importando em que tempo for... E você, quais as filas importantes que já percorreu?

Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas. É palestrante e escritora, autora de oito livros: três de psicologia, três de crônicas e dois de poesia.

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