Caxias do Sul 03/05/2024

Truman ou… de laços, inquietudes e adeus...

Com Ricardo Darín e Javier Cámara, obra reafirma o valor e a confiança entre amigos em uma ode aos afetos
Produzido por Eulália Isabel Coelho, 12/04/2020 às 09:38:09
Foto: Reprodução/Divulgação

Por Eulália Isabel Coelho

O que impulsiona uma amizade, quando o tempo e a distância dizem não? Quando você está do outro lado do planeta e não espera que, à sua porta, surja seu melhor amigo de infância? E ele chega com doçura para te acalentar ainda que discorde de você em tantas coisas? Uma amizade assim requer entrega de ambos, exige lealdade, comprometimento e, ao final, algum desapego. Quando dois amigos se reencontram em uma situação adversa para um deles, há muito o que (re)descobrir, há muito o que adivinhar e nem tanto assim a dizer. Nesse silêncio, cabem todas as falas de seus corações. Articuladas no olhar, nos gestos, no riso, no choro.

“A amizade é, acima de tudo, certeza. É isso que a distingue do amor”. A frase atribuída à escritora Marguerite Yourcenar dá a medida para que compreendamos “Truman” (Espanha/Argentina, 2015), dirigido pelo cineasta catalão Cesc Gay (Francesc Gay i Puig).

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“Truman” exalta a amizade entre dois homens, vividos pelo sempre carismático Ricardo Darín e pelo incrível Javier Cámara, um dos atores preferidos de Pedro Almodóvar. É também um filme sobre despedida e o inviolável amor de um homem e seu cão. Os temas são tratados com sutil dramaticidade, em que o riso é centelha a nos aliviar. Cesc Gay consegue conduzir a história (escrita por ele e Tomás Aragay) com habilidade, sem nunca pesar a mão sobre o sofrimento dos personagens. “Truman” é uma ode ao que há de mais nostálgico e belo, no afeto que se abandona no tempo, mas que nunca finda. Na verdade, é sempre princípio. É sempre presença. É sempre o abraço mais esperado.

Ricardo Darín entrega a Julián, seu personagem, uma carga dramática impressionante. Nessa performance ele se reafirma como um dos grandes atores da atualidade. Na verdade, sua atuação, como a de Javier Cámara, o Tomás, é irretocável. Os dois atores preenchem a tela em comovente desempenho. Nos emociona sua amizade, porque também a temos ou tivemos em algum momento da vida. São eternos os amigos com os quais podemos contar nas noites insones, nos dias de quarentena, na solidão do inverno. Quando a chuva não cessa e estamos empapados de tristeza. Pois é assim que a amizade é certeza. Julián diz a Tomás: “Sabe o que você tem me ensinado todo esse tempo? Que você não pede nada em troca”. Aí está a assertiva aceitação desse laço.

“Truman” traduz de modo surpreendente temas caros aos nossos dias: o valor da confiança, a vontade individual a ser respeitada, o enfrentamento de situações-limite, o destino guiado pelas nossas próprias mãos se assim desejarmos. Acima de tudo, o afeto em suas facetas diversas. Se a vida está fadada a não mais pulsar, por que não ouvimos quem a está a perder? Nossos dogmas e nossas condutas não deveriam ser impostos ao outro. O dilema de Julián, cuja doença o levará em breve, e o do amigo que o acompanha, é suficiente para reiterar nossa estranheza diante da finitude. Afinal, como pergunta Caetano em “Cajuína”: “Existirmos, a que será que se destina?”

Julián é irredutível quando decide parar o tratamento médico, embora pressionado por familiares. Tomás é a figura de parcimoniosa postura que, aos poucos, aceita a vontade do amigo. Porque é preciso confortá-lo e encarar sua ausência logo adiante. Mas não, não torça o nariz para essa história tão humana e bem construída. Muitos filmes já abordaram o tema da doença terminal, nenhum deles de forma tão simples e genuína. Isso foi possível porque Cesc Gay tudo compôs com graça, leveza e um toque de elegância.

Os filamentos fraternos entre os personagens, o amor incondicional de Julián pelo seu cão Truman e a busca por um lar que o acolha, são acompanhados por uma trilha sonora de tonalidades melancólicas e pontuais. Não há excessos em “Truman” e isso o torna ainda mais pungente. São entregues ao espectador questões humanas comuns e a possibilidade de se filosofar sobre os meandros da existência, se assim preferirmos.

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Curiosidades

“Truman” ganhou o Prêmio Goya 2016 (o Oscar espanhol) de Melhor Filme, Direção, Roteiro Original e Atores (protagonista e coadjuvante).

Ricardo Darín recebeu também a Concha de Prata de Melhor Ator no Festival de San Sebastian.

Cesc Gay já havia dirigido Darín e Cámara em “O que os homens falam” (2014). Os dois não contracenaram, pois participaram de histórias diferentes.

O cão Troillo, o Truman do filme, e Darín tiveram uma conexão imediata segundo contou o diretor. Troillo faleceu algumas semanas após as filmagens.

E, sim, estou entre os fãs de Darín, esse portenho que sabe dizer palavrões como ninguém. Se não entendeu, assista aos seus filmes!

Eulália Isabel Coelho (Biba) é jornalista, professora e escritora

e-mail: bibacoelho10@gmail.com