Caxias do Sul 05/05/2024

Tradução, por que não?

Traduzir pode ser escrever na nossa língua, com as nossas palavras, o texto de outro, que passa a ser nosso
Produzido por Paulo Damin, 17/02/2023 às 17:30:52
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Meu colega Kall Sales traduziu o conto Cendrillon, de Charles Perrault, como Cinzerela. Acho ótimo. Afinal de contas, o elemento das cinzas é fundamental para o contexto e para a construção da personagem do conto de fadas. Em francês, isso já vem no nome: cendre significa “cinza”. Sabe-se lá por que nas primeiras versões escolheram chamá-la de “Cinderela”, que não remete a nada, a não ser ao mito que ela mesma inaugurou com esse nome.

Aí o Kall foi visitar a vó dele, no interior do Ceará, e contou orgulhoso que havia publicado um livro. Ela pediu para ele contar a história.

– É uma moça adotada que passa anos sendo humilhada pela família. Até que um dia ela recebe ajuda de uma fada, que lhe dá um sapatinho de cristal para ir a um baile. E o príncipe se apaixona por ela. E são felizes para sempre.

– Meu filho – disse a vovozinha, condoída – Essa história já existe…

E assim o Kall descobriu uma bela definição de tradução: escrever uma história que já existe.

É uma boa alternativa para quem sente a urgência de escrever alguma coisa, mas está escasso de ideias suficientemente interessantes para que o inspirem a escrever algo novo. Traduzir, então, pode ser escrever na nossa língua, com as nossas palavras, o texto de outro, que passa a ser nosso. Compartilhamos assim a responsabilidade da autoria.

E o melhor dessas traduções de obras clássicas, que já foram traduzidas inúmeras vezes, é que o peso da utilidade vai diminuindo a cada publicação. Quantas versões de Cendrillon existem em português? O serviço de apresentar aquela lenda pela primeira vez para as crianças brasileiras já foi feito séculos atrás. E o mesmo vale para obras mais modernas. Quem traduziu por primeiro a Odisseia, por exemplo, teve o peso de inaugurar o mito de Ulisses para toda uma nova cultura. Já o Donald Schüller pôde trabalhar mais solto, pôde se divertir mais.

Uma história curiosa da tradução feita no Brasil envolve Animal farm, do Orwell. A primeira versão foi feita por um milico, durante a ditadura dos anos 1960-80. Tinha um propósito evidente de falar mal do comunismo: daí “A revolução dos bichos”. Distribuíram o livrinho para todas as escolas públicas. Estava em disputa o termo “revolução”, sendo que, na obra original, revolution não aparece nenhuma vez (o termo lá é rebellion). Hoje há novas opções, inclusive com o título “A fazenda dos animais”.

Na tradução, tem sempre muita coisa em jogo. E, diferentemente de outras áreas, aqui o jogo, como brincadeira, fica mais divertido conforme o tempo passa.

Faz anos que estou traduzindo Pinocchio como “Pinhãozinho”. Afinal de contas, ele foi feito de um toco de pinheiro e por isso recebeu aquele nome, em italiano. Não pretendo mudar toda a visão sobre a personagem do Collodi, assim como o Kall não queria varrer todas as cinzas da Cinderela tradicional. É apenas outra opção.

Taí outra definição de tradução: dar opção para quem não tem tempo ou vontade de estudar a língua estrangeira para ler as obras originais. Se isso puder ser feito de modo divertido, por que não?

Paulo Damin é escritor e tradutor em Caxias do Sul.

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