O Direito do Trabalho, que nasceu para proteger o trabalhador em suas relações desiguais com o empregador, parece estar passando por uma metamorfose silenciosa. Uma mudança que não se dá nas leis, mas nos comportamentos.
O que antes era um direito reconhecido como essencial, com caráter alimentar e de proteção, começa a ser transformado em um ativo comercial. Surge, então, o mercado de cessão de créditos trabalhistas e, com ele, um alerta.
Imagine a cena: um trabalhador que lutou anos na Justiça para ver reconhecido um direito, decide vendê-lo. Ele cede seu crédito a uma empresa especializada, que o compra por até 80% do valor líquido e promete o pagamento em 24 horas. Para quem precisa quitar dívidas, pagar o aluguel atrasado ou cobrir despesas de saúde, parece uma oportunidade justa. Mas o que, à primeira vista, soa como um alívio, guarda uma transformação profunda na essência do Direito do Trabalho – um sistema que começa a girar em torno do lucro.
Por trás dessa prática, escondem-se inúmeras fragilidades, tanto para o trabalhador quanto para o empregador. O trabalhador, muitas vezes, é levado pela urgência, abrindo mão de uma parte significativa do que conquistou na Justiça. O que poderia ser uma vitória cheia de significado se transforma em um negócio, uma transação, quase sem emoção. Ele recebe o dinheiro rápido, mas à custa de uma parte de seu direito, e, talvez, sem compreender plenamente as consequências de sua decisão.
Já para o empregador, o cenário se torna ainda mais delicado. Quando o crédito é vendido, ele deixa de negociar diretamente com o trabalhador – uma figura com quem, apesar das diferenças, havia uma relação, um histórico, uma possibilidade de diálogo. No lugar do trabalhador, entra uma empresa compradora de créditos, focada em maximizar seus lucros. Não há margem para conversas, para acordos mais humanos.
As execuções tornam-se rápidas, implacáveis. O empregador, que muitas vezes enfrenta suas próprias dificuldades financeiras, é empurrado contra a parede. A chance de negociar prazos ou condições desaparece, e ele se vê à mercê de estratégias jurídicas agressivas que priorizam o lucro em detrimento da razoabilidade.
E há ainda outra questão, mais sutil, mas não menos grave: o impacto no próprio sistema de Justiça. Quando uma ação trabalhista vira moeda de troca, ela deixa de ser uma busca por justiça e se torna um negócio. Isso desvirtua o propósito original do Direito do Trabalho. É como se a Justiça perdesse sua humanidade, se convertendo em uma engrenagem fria de mercado, onde as histórias, os conflitos e os esforços de quem luta por seus direitos são esquecidos em meio a cálculos financeiros.
Esse mercado crescente também reforça um paradoxo: o sistema que deveria ser uma solução para a desigualdade entre trabalhador e empregador acaba criando novas desigualdades. Pequenas e médias empresas, que já enfrentam dificuldades para acompanhar as regras trabalhistas e manter a saúde financeira, são as mais afetadas. Em muitos casos, o impacto de uma cobrança agressiva pode levar ao fechamento do negócio, gerando mais desemprego e perpetuando o ciclo de precariedade.
Por outro lado, é compreensível que o trabalhador busque alternativas diante da morosidade do Judiciário. Esperar anos para receber um valor que, para ele, é vital, não é uma opção viável. E é aqui que a reflexão se torna mais profunda: o problema não está apenas na mercantilização das ações, mas também em um sistema que demora tanto para entregar justiça que força as pessoas a aceitarem qualquer atalho para alcançar o que lhes é devido.
No entanto, precisamos questionar: a quem interessa que a Justiça do Trabalho se torne um mercado? E quais os limites éticos e sociais dessa transformação? Quando um direito deixa de ser tratado como tal e vira uma simples oportunidade de negócio, o que estamos perdendo?
Talvez o maior risco dessa prática não seja apenas a pressão sobre o empregador ou a perda de direitos pelo trabalhador, mas a desumanização do próprio sistema. Ações trabalhistas não são apenas números, valores ou sentenças. São histórias de vidas, de relações de trabalho, de empresas e pessoas que, em algum momento, estiveram em conflito, mas que merecem um desfecho digno.
O Direito do Trabalho não pode se perder em um jogo de mercado. Ele deve ser, acima de tudo, um instrumento de equilíbrio e justiça. Enquanto transformamos ações em mercadoria, corremos o risco de esquecer que, por trás de cada processo, há pessoas. Pessoas que merecem mais do que lucro: merecem respeito. E talvez essa seja a verdadeira essência que precisamos resgatar.
Ciane Meneguzzi Pistorello é advogada, com pós-graduação em Direito Previdenciário, Direito do Trabalho e Direito Digital. Presta consultoria para empresas no ramo do direito do trabalho e direito digital. É coordenadora do Curso de Pós-Graduação Latu Sensu em MBA em Gestão de Previdência Privada – Fundos de Pensão, do Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG.
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