Caxias do Sul 24/04/2024

Precisamos falar sobre o cigarro eletrônico

Apresentado pela indústria como alternativa ao cigarro convencional, o produto, na verdade, causa os mesmos males, com roupagem diferente
Produzido por Luciano Bauer Grohs , 31/03/2022 às 14:27:58
Foto: Wilson Maccagnan

Os cigarros eletrônicos, ou dispositivos eletrônicos de fumar - DEF (vape, juul, e-cigarette entre outros nomes), vêm sendo cada vez mais vistos e utilizados, especialmente pelos jovens. Paralelamente, há uma grande desinformação sobre o tema.

O uso de cigarro eletrônico nos Estados Unidos corresponde a cerca de 80% do número de fumantes entre alunos de ensino médio. Estima-se que, no Brasil, este já seja o principal modo de uso de cigarros na faixa abaixo de 30 anos. 80% dos fumadores de cigarro eletrônico no Brasil têm entre 18 e 34 anos.

Estima-se que 5% dos que experimentam o produto se tornam usuários regulares. É uma realidade visível e com consequências já no presente. Há previsões de que o lucro mundial derivado de cigarros eletrônicos possa ultrapassar o convencional já em 2023.

Com o ingresso dessa modalidade de consumo de cigarros em nosso meio, ainda que totalmente proibida no Brasil, percebe-se que há um retrocesso em políticas públicas (até pela falta de velocidade de respostas a esse novo desafio), crescimento no número de seguidores, que também se apresentam mais jovens, normalização do consumo e custos sociais significativos. As atividades esportivas, que por muitos anos tiveram de ser banidas de suas relações com as indústrias do cigarro, viram o retorno desses patrocínios a partir de 2019.

Isso ocorreu, por exemplo na Fórmula-1, com patrocínio às empresas Ferrari e McLaren, e no futebol, em que o Paris Saint-Germain, das estrelas Neymar e Messi, anunciou parceria com cigarros eletrônicos em 2021. A empresa patrocinadora, segundo o anúncio, sempre seguiu o conceito de “amor à vida”.

Outra empresa, a Souza Cruz (hoje BAT – British American Tobacco), mudou recentemente seu logotipo, retirando a folha de tabaco da imagem, mostrando que o avanço dessa indústria, cada vez mais, é para além dos cigarros convencionais.

Credito: Photo by averie woodard on Unsplash

A indústria tem trabalhado o dispositivo eletrônico de fumar em três pilares:

- sem fumaça

- inovador

- nicotina

Sem fumaça

O cigarro eletrônico não é um gerador de vapor! O que é inalado é um aerossol (assim como na fumaça), isto é, um conjunto de substâncias particuladas envolvido em um veículo gasoso. Entre os componentes (e há grande variedade, conforme a composição), encontram-se partículas que podem provocar doenças crônicas e mesmo câncer, algumas até mais potencialmente danosas do que os elementos do cigarro tradicional.

As partículas inaladas são menores que um grão de areia, com alta absorção. Pelo menos dez substâncias listadas como causadoras de câncer, defeitos ao nascimento ou outras alterações reprodutivas, foram identificadas no aerossol do cigarro eletrônico. Uma das maiores produtoras de dispositivos médicos para inalação foi adquirida em 2021 por uma grande produtora de cigarros, tendo havido manifestações contrárias das Sociedades Respiratórias em nível mundial.

Inovador

O desenvolvimento de novas tecnologias é associado com o sucesso dos produtos. A contribuição tecnológica para consumo, por exemplo, no Vale do Silício, trouxe formatos novos e mais sedutores do que os cigarros eletrônicos iniciais, que se assemelhavam a cigarros convencionais. Já estamos hoje na quarta geração de dispositivos, com maximização de efeitos como o uso de sais de nicotina (mais absorvíveis) do que nicotina base.

A campanha da ABEAD (Associação Brasileira do Estudo do Álcool e Outras Drogas) usa a frase “O produto é novo. Os truques são os mesmos de sempre” para referir-se ao cigarro eletrônico. O uso de aromas como efeito de sedução também tem por objetivo a fidelização, principalmente dos jovens, e é retirado o cheiro característico do cigarro, rechaçado como desagradável.

Há ainda sabores, cores e um inevitável apelo à tecnologia. Vão-se alguns anos desde que o cigarro eletrônico aparecia com o formato cilíndrico do cigarro convencional. Hoje, são coloridos, modernos e com uma relação com a eletrônica e o universo gamer.

Entre os sabores adicionados cita-se de menta a algodão-doce, morango, pepino, refrigerantes e o que mais possa atrair jovens consumidores.

Banner "convidando" a evitar qualquer tipo de cigarro, posicionado no Congresso Respiratório Europeu realizado em Madri, na Espanha, em 2019 (Foto: Luciano Grohs)

Nicotina

Documentos internos da indústria do tabaco de mais de 40 anos atrás mostram o objetivo e a criação de dispositivos que maximizem a absorção de nicotina. Nicotina é o elemento responsável pela dependência química, e a pessoa segue fumando pela absorção dessa droga, com alto poder viciante. Para que se busque o abandono do vício do tabagismo, uma das estratégias que se pode utilizar é o uso de dispositivos que liberam a nicotina de forma lenta e contínua, como na forma de adesivos.

Daí vem uma informação de que a nicotina, ainda que viciante, não faria mal, pois alguns divulgam que somente outras substâncias particuladas causariam doença. Nessa linha, há propostas de que o uso dos dispositivos eletrônicos de fumar poderia até ser um método de cessação do tabagismo, com um lobby expressivo, o que é muitas vezes a substituição de vícios.

Esse equívoco faz com que muitos vejam o fumador de cigarro eletrônico como um não-fumante. Porém, ao usar formas diferentes de nicotina, a sua absorção é semelhante ou até maior do que alguns tipos de cigarro convencional.

Os dispositivos eletrônicos de fumar são, em resumo, uma inovação disruptiva no mundo da dependência química. Estimulam a iniciação, desestimulam a cessação do tabagismo, ao mesmo tempo que voltam a normalizar o ato de fumar, que vem sendo rechaçado em nosso meio. Não há nenhum dado consistente de que reduzam os danos quando comparados ao cigarro convencional.

A falsa ideia de que reduz danos é incorreta e contribui para a pandemia de dependência de nicotina. Entre os maiores alvos, sem dúvida, encontram-se os jovens, com maciças campanhas com festas, artistas e celebridades, inclusive do esporte. Precisamos estar atentos a essa ameaça. Precisamos falar sobre o cigarro eletrônico.

Luciano Bauer Grohs é médico pneumologista, Fellow do American College of Physicians e professor da Universidade de Caxias do Sul.