Caxias do Sul 18/05/2024

O prazer de julgar

Momento atual do mundo evoca reflexão importante de famoso escritor e filósofo sobre a natureza humana
Produzido por José Clemente Pozenato, 07/07/2022 às 08:25:15
Foto: Marcos Fernando Kirst

Diante do quadro confuso provocado pela guerra na Ucrânia e por alguns conflitos que o Brasil está vivendo, voltei a ler Elias Canetti (1905-1994), um mestre que nunca deixo de consultar.

Apenas para informar: Elias Canetti nasceu na Bulgária, na época sob domínio turco, de família de judeus sefarditas, migrada da Espanha. No seu livro A língua absolvida, relata que, aos oito anos, tinha de se haver com quatro idiomas diferentes dentro de casa. Emigrou para a Áustria e, na adolescência, viveu um pouco na Alemanha e na Suíça. Quando a Áustria foi anexada à Alemanha nazista, em 1938, migrou com a esposa para Londres. Ali recebeu a cidadania britânica, em 1952.

Começou sua vida de escritor como romancista, escrevendo em língua alemã. Mas foi com um ensaio de cunho político, intitulado Massa e Poder, que foi honrado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1981.

Na minha opinião, nenhuma de suas obras literárias tem a força e a importância que tem este ensaio, escrito em 1960. Em português, foi publicado pela editora da Universidade de Brasília, em 1983. Apenas como curiosidade: comprei o livro naquele mesmo ano, ao preço de 8.990,00 cruzeiros, uma quantidade numérica 200 vezes maior do que seria seu preço hoje em reais...

A esse livro sempre recorro quando tenho dificuldade de processar e de entender o que sai nos jornais, sejam eles de papel, sejam eles eletrônicos. Massa e Poder reúne comentários extremamente lúcidos sobre o que move os comportamentos, tanto dos que estão na massa chamada povo, quanto dos que estão no poder em qualquer de suas formas.

Como o autor vivenciou as situações que analisa dentro do quadro sociopolítico de ascensão de um poder baseado nas massas, como foi o nazismo, nos dá ferramentas para diagnosticar com relativa clareza as doenças que atacam a democracia, ou, pelo menos, a convivência civilizada.

Uma das enfermidades humanas apontadas por Canetti é a que ele chama, com letras grifadas, de o prazer de julgar. Observa ele que toda a pessoa que faz um julgamento, dizendo “é um livro péssimo”, ou “é um quadro medíocre”, diz isso com satisfação, com gosto. Segundo ele, é inequívoco que todos sentimos prazer em julgar: “Trata-se de uma alegria dura e cruel, que não se deixa perturbar por coisa alguma. A sentença somente é sentença quando é emitida com segurança atemorizante. Ela ignora a bondade, da mesma forma como ignora a prudência”.

E onde está a fonte desse prazer? O olho de Canetti vai direto ao ponto: está na tendência humana de dividir o mundo em duas partes. Há um grupo inferior e um grupo melhor, há um partido mau e um partido bom. E nós sempre estamos do lado melhor e, para ficar ainda mais claro que somos melhores, julgamos e rebaixamos os outros.

Segundo Canetti, a tendência a acusar, julgar e sentenciar se torna mais forte quanto mais uma parte da sociedade está interessada em tomar o poder em suas mãos. Seja o poder de governar, seja o poder de dirigir a opinião pública. Daí para a “formação hostil de maltas” que tudo derrubam, adverte Canetti, é só um passo: “Os limites dos bons ficam então precisamente delimitados, e coitado do mau que ousar ultrapassá-los! Ele nada tem a procurar entre os bons e deve ser aniquilado”.

Em sua experiência de quem teve mais de uma nacionalidade e mais de um idioma, a convivência pacífica somente existe pondo-se de lado o prazer de julgar os outros.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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