Caxias do Sul 19/04/2024

Na verdade, ninguém se importa

Em comédia incômoda, personagens de caráter duvidoso se confrontam e ultrapassam limites éticos e morais
Produzido por Eulália Isabel Coelho, 06/03/2021 às 08:04:41
Foto: LUIZ CARLOS ERBES

Por Eulália Isabel Coelho

“Os homens são bons de um modo apenas, porém são maus de muitos modos” (Aristóteles em “Ética a Nicômaco”)

Imorais, amorais. Assim são os personagens de Eu Me Importo (Netflix, 2020). Decência é palavra que não cabe na trama dirigida e roteirizada por J Blakeson. Desconfortável, o filme não relativiza nada, apostando descaradamente na crueldade. Vemos os fatos sob a ótica da protagonista, uma vigarista que quer “vencer na vida”. Ou, em outras palavras, viver o “american way of life”, o sonho americano.

Em Eu me Importo não existe dilema moral, nem ética, nem crise de consciência. De algum modo, todos são vilões desde que haja um esquema que os favoreça. Rosamund Pike, ganhadora do Globo de Ouro 2021 de Melhor Atriz em Comédia ou Musical por sua atuação no filme, é Marla Grayson, trapaceira com um staff a seu serviço. Uma mulher sofisticada e astuciosa, personificação dissimulada do Mal. E não há exagero nesta constatação.

A protagonista viabiliza um esquema em que obtém laudos falsos sobre a saúde de idosos escolhidos criteriosamente. São pessoas solitárias ou cuja família é ausente. Assim, ela consegue a guarda dos velhinhos por meios legais, através da corte em que um juiz aparvalhado concede a ela a tutela das vítimas.

Rosamund Pike e o sorriso de Marla

Tudo vai bem até Marla fazer uma escolha equivocada ao colocar no asilo Jennifer Peterson (Dianne Wiest), uma senhorinha aparentemente sem vínculos parentais. O enredo, a partir daí, passa por reviravoltas convergindo no jogo de forças entre vilões. O diretor não está interessado em uma discussão ética sobre o sistema legal dos EUA ou sobre o caráter dos personagens, quer apenas “divertir” o espectador.

O tema espinhoso cai por terra, não há piedade para com as vítimas. Os idosos têm como destino o esquecimento. Eu Me Importo é um filme cunhado para as figuras audaciosas da protagonista e de seu antagonista. Roman Lunyov, personagem vivido por Peter Dinklage (Tyrion Lannister, de Game of Thrones), que confrontará Marla.

J Blakeson escolhe um caminho em que apenas o embate entre Marla e Roman (Mal versus Mal) importa. Uma sucessão de armadilhas engenhosas boladas pela vilã vai minando as forças de seu adversário e vice-versa. É jogo de gato e rato. Se o autor aposta na torcida do espectador por esse ou aquele anti-herói, erra o passo. Não tem como ser complacente com o comportamento de ambos. E, ainda que tente fazer graça com mafiosos atrapalhados, não dá vontade de rir.

Dianne Wiest interpreta Jennifer Peterson

O filme de J Blakeson é produzido para mostrar o quanto Rosamund Pike é incrível em papéis que exigem cinismo e desfaçatez. Ela já havia demarcado esse terreno como Amy Dunne em Garota Exemplar (2014) e potencializou essa faceta com Marla.

Sua personagem parece fixada na fase oral freudiana, estágio em que a criança leva tudo à boca. Ela está sempre pitando um vaporizador, bebendo com canudos, levando canetas à boca. Esses traços nos fazem pensar em uma certa imaturidade psicológica. Isso explicaria as “brincadeiras malvadas” para conseguir o que quer. Contudo, é o meio sorriso enregelante a verdadeira marca da protagonista.

Um dos méritos do filme é fazer com que a atriz fique frente a frente com um ator igualmente qualificado. Peter Dinklage aproveita a oportunidade e manda ver com seu temperamento explosivo. O embate entre eles, motor do filme, parece enaltecer o que é enganoso e desonesto. Propulsores da engrenagem de influências entre os personagens em que ninguém é o que parece ser.

Peter Dinklage em ótima performance

Marla joga com cinismo e desfaçatez

Ao lidar com tema tão denso, a velhice e o abandono em casas de repouso, o diretor opta por não levá-lo a sério. Afinal, esse é só um ponto de partida para sua comédia. Mas fica um gosto amargo quando se percebe que tanto faz, os inescrupulosos sempre se dão bem. Afinal, é o que nos mostram todos os dias os noticiários, as redes sociais. O Brasil é exemplo claro de que Marlas e Romans fazem acordos, juntam forças e mantêm-se no poder.

Na narrativa de Eu Me Importo, Marla representa o emblema capitalista do ganho fácil calcado na desestruturação de princípios e valores. Na América construída em torno de simbolismos de lucro e ascensão vertiginosas, ela se vale de astúcia e artimanhas para chegar onde quer. Para isso, descarta o humano ao se desconectar dos sentimentos.

A obra desdenha o correto, tomando-o por ultrapassado, destituído de valor, sem razão de ser. E, no final das contas, ninguém se importa.

Assista ao trailer do filme AQUI

FICHA TÉCNICA

Eu Me Importo (I Care a Lot, EUA, 2020)

Direção e roteiro: J Blakeson

Fotografia: Doug Emmett

Trilha Sonora: Mar Canham

Elenco: Rosamund Pike, Peter Dinklage, Eiza González, Dianne Wiest, Chris Messina, Nicholas Logan

Duração: 118 minutos

FOTOS/DIVULGAÇÃO NETFLIX

Eulália Isabel Coelho é jornalista, especialista em Cinema e escritora.

mail bibacoelho10@gmail.com

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