Caxias do Sul 16/05/2024

Menos coaching, mais literatura

Não é em uma sala de treinamento que você refinará a sua subjetividade, o seu imaginário, a sua correnteza de pensamento abstrato
Produzido por Marcos Mantovani, 26/03/2020 às 08:35:32
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Para o setor empresarial, talvez soe de maneira deslocada. Talvez soe inclusive de maneira afrontosa. A introspecção da leitura literária substituindo a extroversão dos exercícios de coaching. A travessia privada e silenciosa que um livro de literatura oferece substituindo os treinamentos grupais e sonoros.

Segundo certos conteúdos que pesquiso há seis ou sete anos, pensar sobre os traços comportamentais de coletividades e de ambientes trabalhistas é pensar sobre cultura — cultura no sentido atribuído pelo antropólogo californiano Clifford Geertz (1926 – 2006): “Uma teia de significados tecida pelo homem”.

Alguns significados tecidos pelo meio empresarial sempre fizeram com que eu, alguém não empresarial, observasse com estranhamento práticas que para mim não fazem tanto sentido. Estar no lado de fora permite que se tenha a curiosidade e a petulância de olhar para os cantos que não são muito visitados pelos frequentadores habituais. No terreno dos negócios, meu olhar é estrangeiro.

Mas é justamente no contato com um estrangeiro que, de modo automático, você desperta a sua autoconsciência identitária, você se percebe dentro de uma atmosfera cultural específica. Isso está acontecendo comigo neste exato momento, pois estou confrontando as minhas características profissionais — e pessoais — com as características de quem vive em uma lógica de empresa.

E nestas linhas o conforto é todo meu, pois a voz que se articula aqui é unilateral: não consigo escutar nem ler a sua. Amanhã ou na semana que vem, talvez seja a sua vez de olhar com atenção e distanciamento para os cacoetes e trejeitos da minha própria esfera de trabalho, cujas demarcações são a docência, a inclinação pela arte, a etnografia urbana, o miolo dos livros literários, as letras que não se atrevem a aconselhar nem treinar ninguém.

Do jeito que consigo enxergar, se por um lado as práticas de coaching têm uma relevância operacional, encorajadora e proativa, por outro lado elas negligenciam alguns atributos importantes da natureza humana. Atributos de peso, traços sem os quais uma identidade ficará meio retraída, ficará pela metade. Em outras palavras: conforme o que a tradição literária comprova desde Shakespeare (1564 – 1616), não é em uma sala de treinamento que você refinará a sua subjetividade, o seu imaginário, a sua correnteza de pensamento abstrato.

Não é por meio da oralidade de outra pessoa — nem de seus slides autoexplicativos — que você construirá territórios mentais cujas paisagens e brisas de liberdade serão uma companhia permanente tanto no emprego quanto no desemprego, na alegria e na tristeza, territórios mentais que surgirão a cada narrativa literária que você atravessar em privacidade e recolhimento, territórios mentais que nenhum PowerPoint de sala de reuniões conseguirá reproduzir, as planícies e os relevos, os barcos e os trens, as sensibilidades e as condutas contraditórias que as personagens de Guimarães Rosa e Jack London e Raduan Nassar entregarão esteticamente no instante da sua leitura.

Marcos Mantovani é professor de Comunicação no Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG. É autor de Sala de Embarque (2011) e Borboleta Nua (2013), romance vencedor do Prêmio Vivita Cartier. Tem mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade pela UCS.