Caxias do Sul 26/04/2024

Casa de chão

O piso de chão batido da casa da vizinha, dona Angerca, imprimiu lembranças perenes na memória, que não se esvaem como picumã
Produzido por José Clemente Pozenato, 08/07/2021 às 08:40:45
Foto: Marcos Fernando Kirst

Nossos vizinhos mais próximos em Santa Teresa, na descida de um morro entre as duas casas, eram o seu Felicício e a dona Angerca. Isso na pronúncia com que eram tratados. Na realidade, em português padrão, eram eles o seu Felício e a dona Angélica.

Seu Felicício trabalhava numa serraria ali perto. Dona Angerca cuidava da casa, das crianças, e tratava duas ou três cabras de leite. Dessas cabras é que minha mãe recebia uma garrafa de leite todas as manhãs, e era esse leite que eu tomava. Em minha primeira fotografia, com um ano e pouco de idade, eu apareço com a garrafa vazia nas mãos. De acordo com o relato de minha mãe, foi o jeito de me fazer parar de chorar diante do retratista. Retratista era o nome dado ao fotógrafo ambulante.

Dona Angerca fazia também uma canjica muito gostosa, que nós, as crianças, comíamos na sua cozinha de chão, que cheirava a picumã. Era o nome que se dava para a fuligem do fogo de chão, que inundava a casa toda.

A gente chamava de casa de chão aquela que não tinha assoalho de madeira, como era a da dona Angerca. O piso era de chão batido. Para ele ficar mais firme era misturado esterco de gado com água na terra, o que também dava um cheiro carregado... A casa não tinha forro no teto, nem sótão. Do chão dava para ver as tabuinhas de madeira do telhado, todas pretas de fuligem. Isto é, de picumã.

Mesmo trabalhando numa serraria, seu Felicício não conseguira madeira serrada para fazer a casa. As tábuas das paredes e as tabuinhas do telhado eram de madeira lascada. As janelas eram também do mesmo tipo de madeira, da largura de duas ou três tábuas, fazendo um tampão. E não tinha dobradiças. Eram “janelas de correr”, numa travessa ao longo da parede. E não tinham também vidraças. Fechadas as janelas, ficava tudo escuro.

Tudo isso aprendi porque meu pai, além de professor e jardineiro, era também carpinteiro e marceneiro. Por sinal, a foto em que apareço com a garrafa de leite nas mãos tem como fundo um pequeno altar de madeira. Esse altar era da capela de Santa Teresa, que meu pai tinha pegado para consertar. Na fotografia, estou sentado num telhado feito de tabuinhas. Não, eu não estava em cima do telhado da casa! O telhado da estrebaria é que tinha ido parar no chão, com uma ventania. E meu pai aproveitou para montar um cenário especial para o primeiro retrato do primeiro filho.

O futuro autor de “O Quatrilho”, com um ano e pouco de idade, esvaziando uma garrafa com o leite das cabras da vizinha (Foto: Arquivo pessoal)

A nossa casa, feita, é claro, por meu pai, era bem diferente da casa de dona Angerca. Era uma casa de assoalho, feita com madeira de serraria. Era construída em cima de cepos de canela preta, que não apodrece quando é enterrada. Sobre os cepos eram colocados baldrames feitos de toras de pinheiro. Em cima dos baldrames era pregado o assoalho, de madeira plainada e depois encerada. As paredes externas eram feitas com tábuas de polegada, e as internas com tábuas de meia polegada. Tanto nas paredes internas como nas externas, a fresta entre as tábuas era coberta com mata-juntas, uma espécie de régua larga e comprida. E, como remate de tudo, a casa era pintada com duas mãos de cal.

Embaixo do assoalho ficava o porão, onde era guardado o trigo, o milho, o feijão, dentro de caixas. E no alto da casa ficava o sótão, com uma escada de madeira para se chegar até ele. No sótão, meu pai tinha a mesa de marceneiro, com torno a manivela e todas as ferramentas: plainas, garlopas, formões planos e côncavos, serrotes, serras, pregos, parafusos, sei lá o que mais... Ah, sim, havia também o diamante para cortar vidro, guardado numa gaveta a sete chaves!

Muitas horas eu passei vendo meu pai fazendo móveis envernizados, caixilhos para janelas, cadeiras de palha, bancos de madeira. Mas o maior capricho dele era fazer instrumentos musicais. Fazia violas, violões, bandolins, cavaquinhos e banjos. Até um violino ele chegou a fazer, a pedido de um vizinho regente da banda, mas prometeu que nunca mais faria, dava muito trabalho. O maior era tornar côncava a caixa do instrumento, com vapor de água. Mas o violino que ele fez foi aprovado pelo violinista.

Assim fui percebendo que eu estava numa família diferente, onde a casa de chão batido era coisa ultrapassada. E onde tocar cavaquinho era um desafio posto diante dos meus olhos, entre outros desafios.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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