Caxias do Sul 19/04/2024

“Canti Rústeghi”: poemas tecidos em Talian

Resgatar e preservar a língua dos imigrantes passa pela reedição de obras cruciais
Produzido por José Clemente Pozenato, 10/10/2020 às 08:16:48
Foto: Marcos Fernando Kirst

A Língua Absolvida é o título de uma das obras mais bonitas de Elias Canetti. O autor escreveu também o livro Massa e Poder, com o qual mereceu o Prêmio Nobel, livro que, como costumo dizer, é um dos dez que eu guardaria comigo se fosse obrigado a ter só dez livros.

A Língua Absolvida é outra obra imprescindível. Canetti nasceu na Bulgária e aos oito anos já tinha de lidar com quatro idiomas. É a sina de quem usa uma língua situada nas franjas do poder etnopolítico: a de obrigar-se a pôr de lado a língua que lhe dá identidade.

Nossa cidade de Caxias do Sul e esta região, durante meio século, tiveram sua própria língua, popularmente chamada de Talian, empurrada para os porões por esse poder etnopolítico. Outro meio século depois teve início o seu resgate, levado adiante por iniciativas localizadas de algumas pequenas organizações. Até que, por iniciativa do IPHAN, seguindo diretriz da Unesco, foi implantado um programa de resgate da diversidade linguística do Brasil.

A primeira língua reconhecida como patrimônio nacional nesse programa foi o nosso Talian, denominação que se impôs por razões etnográficas e linguísticas. Tornou-se assim uma “língua absolvida”!

Outra experiência histórica de “absolvição” de uma língua aconteceu na Provença, com a liderança de Frédéric Mistral. Enquanto na França se falava a langue d’oui, na Provença o idioma era a langue d’oc, assinalando com essa denominação uma sutil diferença para dizer “sim”. Da langue d’oc veio a designação “occitano”, a língua usada pelos poetas provençais, iniciadores na Europa de uma poesia em língua vulgar, sem usar o latim.

Pois o occitano passou a ser uma língua condenada na França, quando Napoleão se tornou imperador. Foi então que Mistral criou um grupo em sua defesa. Criaram o Almanaque Provençal, publicação anual, do grupo, lançaram um grosso dicionário provençal-francês, e promoveram um concurso anual, na Provença, de textos escritos em occitano.

O ponto culminante foi um longo poema épico de Frédéric Mistral, Mirèio, escrito em provençal. Para surpresa do próprio autor, a obra fez sucesso até em Paris, onde o consagrado escritor Lamartine publicou um texto em jornal com o título: “Um grande poeta épico nasceu”. E Charles Gounod compôs uma ópera, com o título francês de Mireille, baseada no poema.

Depois disso, o grupo fundou um jornal, o Aïoli, que é o nome de um molho de azeite típico da Provença. Cheguei a cogitar que se podia lançar um jornal em Talian com o nome de Tócio, que é o molho típico das colônias italianas!

Não cheguei até esse ponto, mas um pouco eu já fiz, ao publicar, em edição bilíngue, os poemas de Canti Rústeghi, com tradussión de Cleodes M. Piazza Ribeiro e ilustrassión de Valdir dos Santos. Foram impressas quinhentas cópias numeradas na gráfica da Universidade de Caxias do Sul. E as ilustrações foram todas impiturite a man. Isto é, não foram impressas, mas pintadas individualmente para cada exemplar.

"CANTI RÚSTEGHI", lançado em 1993

E tudo isso em 1993, vinte anos antes do reconhecimento do Talian como patrimônio linguístico nacional pelo IPHAN.

Agora, falta o passo seguinte: iniciar um processo dinâmico de recuperação desse patrimônio, a começar por nossas escolas. O ponto de partida, na minha opinião, seria pôr novamente em circulação tudo o que já foi publicado em Talian e sobre o Talian. Por exemplo: “Os pesos e as Medidas”, de Italo Balen; o “Nanetto Pipetta” e seus derivados; o “Dicionário Vêneto-Português”, de Alberto Vitor Stawinski, publicado em 1984, quando a designação oficial de Talian ainda não existia. E, é claro, os Canti Rústeghi, dos quais vai uma amostra, em português e em Talian:

ACIMA PIÙ IN SÙ

Acima das louras lavouras Più in sù dele bionde colònie

de trigo e de milho de formento e de panòcie

acima das empinadas encostas più in sù dele rive

a que se agarram parreirais co’i vignai tacadi sù

acima dos telhados das casas più in sù dei coerci dele case

tão vacas plácidas e prenhes che par vache pacifiche e colme

acima, bem acima, está a igrejinha in sù, più in sù, la cieseta

com seus santos co’o sô santi

rubicundos e terrenos rossi, i par persone

e acima da igrejinha E più in sù dela cieseta

o falo cantante do campanário. ‘l batòcio del campanil che canta!

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.

mail pozenato@terra.com.br

Do mesmo autor, leia ouro texto AQUI