Caxias do Sul 18/05/2024

A chocante estreia em uma nova profissão

Acidentes mostraram ao repórter novato a realidade das pistas, seis décadas atrás
Produzido por Luiz Carlos Secco, 02/10/2023 às 09:50:57
Foto: ARQUIVO PESSOAL

No dia 5 de setembro de 1963, 60 anos atrás, fiz minha estreia como repórter de automobilismo no jornal O Estado de S. Paulo, sucedendo o anterior titular, Vladimir Bernick, que precisou dedicar-se à realização do trabalho de conclusão do curso de medicina.

E lá fui eu para o Autódromo de Interlagos para a cobertura do treino dos pilotos para a corrida 500 Quilômetros de Interlagos, que já ganhara prestígio com a organização do Automóvel Clube Paulista, sucursal de São Paulo do Automóvel Clube do Brasil, que regia o automobilismo esportivo até a fundação da Confederação Brasileira de Automobilismo.

Essa corrida foi idealizada para comemorar o Dia da Independência do país e inspirada na 500 Milhas de Indianápolis, dos Estados Unidos, a mais veloz competição do mundo. E seguindo o mesmo molde, a corrida 500 Quilômetros de Interlagos era disputada pelo circuito externo do autódromo, tornando-se a mais veloz corrida brasileira.

Fui muito bem-recebido pelo senhor Ângelo Juliano, um dos criadores dessa prova e presidente do Automóvel Clube Paulista. Muito cortês e atencioso, o senhor Ângelo Juliano me recebeu sob a ponte da Pirelli, que permitia a travessia da pista para o acesso aos boxes do autódromo.

Com sua cordialidade, me deu uma rápida aula sobre automobilismo e estava transmitindo mais informações sobre a corrida quando um forte ruído de excessiva rotação de um motor vindo do final da subida, que antecedia a reta de chegada, um carro levantou voo após chocar-se com uma mureta da parte interna da curva e, como um avião ou um disco voador, foi cair atrás dos boxes sobre várias pessoas que trabalhavam ou, simplesmente, amantes do automobilismo que foram assistir aos treinos.

É importante explicar que, na década de 1960, a posição dos boxes era bem diferente de hoje. Ficava localizado logo após a curva depois da subida, chamada de subida dos boxes, mais ou menos onde hoje é a Curva do Café.

Foi uma cena chocante, porque o barulho do motor, o curto voo e a aterrissagem do carro foram impressionantes. O senhor Ângelo Juliano gritou assustado: “Minha Nossa Senhora, me ajude e proteja esse piloto”, enquanto acompanhou a trajetória do carro no ar até esconder-se atrás dos boxes. Ele correu para o local do acidente, onde transmitiu orientações a outros dirigentes e fiscais de pista e o pessoal de assistência médica.

Depois, muito abatido, disse que, além do piloto Edmundo Bonotti, mais duas ou três pessoas tinham falecido, além de vários feridos. Embora desolado, não perdeu a concentração das ações. Na verdade, o acidente foi chocante, com a perda de vida de algumas pessoas, num dia que deveria ser de festa e não de tristeza.

Como se diz em momentos adversos, a bruxa esteve solta naquele fim de semana, porque, no domingo, logo na primeira volta da prova, um novo acidente ocorreu, provocando a morte do famoso piloto Celso Lara Barberis, que admirei, mas não tive oportunidade de conhecer pessoalmente.

Me senti abalado. Logo na primeira reportagem sobre um novo esporte, ocorreram dois acidentes fatais, chocantes e entristecedores. Pensei em desistir, mas lembrei da responsabilidade que havia assumido com o antigo titular e resolvi permanecer num esporte em que fiz muitos amigos, conheci importantes personalidades, competentes mecânicos e até alguns artistas. E aqui estou, às portas dos 90 anos e ainda aprendendo e conhecendo gente bacana.

A corrida era para carros da categoria Mecânica Continental, que reunia monopostos Ferrari, Maserati, Alfa Romeo e de outras marcas em desuso pela rápida modernização da categoria e tinham seus motores originais substituídos preferencialmente por Ford ou Chevrolet Corvette, numa conjugação de coração novo em um corpo não tão novo que permitia a alguns brasileiros competirem com velozes carros, evitando, assim, que fossem transformados em sucata.

Um recurso idealizado pelos argentinos que utilizavam velhos automóveis para transformá-los em carreteras, em corridas em estradas não pavimentadas. Esses velhos carros recebiam preparação especial para competição e motores potentes que se transformaram em paixão argentina e foi essa categoria que revelou Juan Manuel Fangio e Froylan Gonzalez para as corridas internacionais e a conquista de cinco títulos mundiais. E também o brasileiro Chico Landi, vencedor de dois Grandes Prêmio de Bari, na Itália.

A categoria de Carreteras foi também adotada em outros países da América do Sul e o Automóvel Clube da Argentina promoveu duas corridas internacionais, como a Buenos Aires-Lima-Buenos Aires e a Buenos Aires-Caracas na década de 1940. O Brasil adotou as duas categorias. A de carreteras, para automóveis de turismo, com domínio de Camilo Christófaro, e a Mecânica Continental para monopostos, em que Roberto Gallucci foi o principal destaque.

Provas de Carreteras movimentavam Interlagos

(Foto: Arquivos Internet/ Divulgação)

Mais próxima da Argentina, a categoria Carretera foi muito praticada no Rio Grande do Sul e as primeiras edições da corrida Milhas Brasileiras foram vencidas pelo gaúcho Catarina Andreatta, que, para provocar os paulistas, disse que eles eram muito bonzinhos por organizarem corrida para os gaúchos vencerem.

Isso porque a corrida Mil Milhas Brasileiras, disputada no Autódromo de Interlagos, teve três vitórias de Catarino Andreatta e Breno Fornari e uma de Aristides Bertuol e Orlando Menegaz nas quatro primeiras edições, naturalmente pela maior experiência acumulada.

Considero importante dedicar um espaço para o senhor Ângelo Juliano. Filho de imigrantes italianos, nasceu em São Paulo no dia 7 de abril de 1918 e, aos 14 anos, pretendendo comprar um automóvel para competir escondido dos pais, foi trabalhar para juntar o dinheiro necessário.

Apreciador de esportes, ainda muito jovem frequentava o clube Floresta, onde fez amizade com os atletas do remo, que o convidaram para participar das regatas como timoneiro por ser franzino, muito ágil e esperto. Mas sua paixão eram os carros. Com 19 anos, tirou a carteira de motorista e, em 1939, comprou seu primeiro carro. No dia 12 de maio de 1940, participou da inauguração do Autódromo de Interlagos e, logo depois, em consequência da Segunda Guerra Mundial, assistiu às corridas de carros movidos por gasogênio, porque a gasolina deixou de ser vendida pela dificuldade de importação.

Como piloto, participou de corridas durante três anos, competindo em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná, com 10 vitórias e seis segundos lugares. Em 1956, foi promovido a diretor da Comissão Desportiva do Automóvel Clube do Brasil, seção São Paulo. Sua maior contribuição com o Automóvel Clube do Brasil está exposta na esquina formada pelas avenidas 9 de Julho e Brasil, na capital paulista.

Luiz Carlos Secco trabalhou, de 1961 até 1974, nos jornais O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde, além da revista AutoEsporte. Posteriormente, transferiu-se para a Ford, onde foi responsável pela comunicação da empresa. Com a criação da Autolatina, passou a gerir o novo departamento de Comunicação da Ford e da Volkswagen. Em 1993, assumiu a direção da Secco Consultoria de Comunicação.

Do mesmo autor, leia outro texto AQUI