Caxias do Sul 06/05/2024

A arte de garimpar tesouros impressos

A relevância dos livros que falam sobre livros na condução pela trilha da sabedoria
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 06/10/2023 às 13:59:57
Marcos Fernando Kirst é jornalista e escritor
Foto: Liliane Giordano

Talvez (e enfatizo já de saída o aspecto condicional da palavra escolhida para a abertura deste pequeno artigo), talvez o conceito de “nação” possa ser ampliado para justificar sua aplicação no propósito de assim definir esse imensurável agrupamento humano que inclui pessoas de todas as partes do mundo, ao longo das eras, desde que a escrita de ficção foi criada e se estabeleceu como uma prática vital para aqueles que nela buscam entretenimento e pistas para desvendar os mistérios da essência da vida: os leitores. Resumindo e traduzindo: nós, os leitores, formamos, ao redor do planeta e no surfar do tempo, uma imensa nação multilinguística, multicultural, multifacetada e incontável.

Somos membros de uma nação sem fronteiras, universal, liberta dos limites da territorialidade e acolhedora de todos os temperos que compõem o caldo humano. Diferenciados pelas nuances de nossas individualidades únicas, igualamo-nos e irmanamo-nos em um aspecto inegociável e inarredável, moldador dos pilares basilares de nossas personas: o amor inquebrantável pela leitura, pela literatura, pelos livros. Configuramos uma nação dos leitores.

Além de professarmos a paixão pela leitura em si, possuímos outra característica fundamental que se manifesta no apetite que também desenvolvemos por ler livros que discorrem sobre livros e sobre os escritores dos livros. Isso nos proporciona uma interação com membros da nação que leram livros que nós ainda não lemos e que passamos a desejar ler, e também com análises iluminadoras a respeito de nuances escondidas nos livros que já lemos e que, então, nos vemos induzidos a prazerosamente revisitar. Os livros sobre livros conversam diretamente com cada leitor de livros, proporcionando um deleite que amplia as já por natureza ilimitadas fronteiras do mundo da leitura, colocando-nos em contato direto com almas gêmeas às nossas no universo dessa compulsão benfazeja.

Grandes nomes da crítica e da própria literatura universal se dedicaram a não só produzir obras literárias de valor como também ofertaram aos leitores suas reflexões e avaliações sobre a literatura, legando obras repletas de ensaios, artigos e reflexões a respeito dos livros, que se transformam, por extensão, em excelentes guias de leitura a quem se puser a percorrer suas páginas. Listas e guias de leitura possuem valor prático quando elaboradas por quem entende do riscado, ajudando-nos a detectar obras que realmente sejam capazes de nos oferecer o sumo vital que esperamos extrair do tempo que dedicamos ao consumo das páginas de um livro. Afinal, desejamos empregar nosso tempo e nossa energia vital na leitura de livros que nos sejam relevantes e significativos, mesmo quando singelamente abordados para nosso recreio, e essas dicas habitam justamente as páginas dos livros que falam sobre livros.

Esse anseio se justifica, por exemplo, a partir da compreensão de que nós, leitores, humanos que somos, não possuímos todo o tempo necessário de vida para lermos todos os livros que desejamos. Por isso, é preciso saber selecionar, e alguns autores podem ajudar nesse processo. É o caso do catedrático norte-americano Harold Bloom (1930 – 2019), que se dedicou a escrever muitos livros sobre livros. Em um de seus mais conhecidos, “O Cânone Ocidental”, ele resume assim a questão: “Os setenta anos bíblicos já não bastam para ler mais que uma seleção dos grandes escritores do que se pode chamar de tradição ocidental, quanto mais de todas as tradições do mundo. Quem lê tem de escolher, pois não há, literalmente, tempo suficiente para ler tudo, mesmo que não se faça mais nada além disso”.

Nessa sua supracitada obra, Bloom discorre sobre 26 autores que ele considera os fundadores e tecelões da tradição literária ocidental, exercendo influência sobre todos aqueles que se dedicaram a escrever no Ocidente ao longo dos séculos. Do mesmo autor, podemos ler também a obra intitulada “Como e Por Que Ler”, tecida sob a perspectiva de identificar textos de autores universais nos quais reside a sabedoria. No Prefácio, Bloom reflete: “Nos dias de hoje, a informação é facilmente encontrada, mas onde está a sabedoria? Se tivermos sorte, encontraremos um professor que nos oriente, mas, em última análise, vemo-nos sós, seguindo nosso caminho sem mediadores. Ler bem é um dos grandes prazeres da solidão; ao menos segundo a minha experiência, é o mais benéfico dos prazeres”. E mais adiante, continua: “Caso pretenda desenvolver a capacidade de formar opiniões críticas e chegar a avaliações pessoais, o ser humano precisará continuar a ler por iniciativa própria. Como ler... e o que ler não dependerá, inteiramente, da vontade do leitor, mas o porquê da leitura deve ser a satisfação de interesses pessoais. [...] Uma das funções da leitura é nos preparar para uma transformação, e a transformação final tem caráter universal”.

Também assinados por Bloom, podemos nos deliciar com “Gênio: Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura”, “Shakespeare: A Invenção do Humano” e outros. O escritor argentino/canadense Alberto Manguel, outro apaixonado pelos livros e o ler, nos oferta títulos convidativos como “Uma História da Leitura”, “Os Livros e os Dias” e “A Biblioteca à Noite”. O nobelado peruano Mario Vargas Llosa transitou pelos ensaios sobre livros em seu “A Verdade das Mentiras”, seara em que também se destaca o romancista italiano Italo Calvino (1923 – 1985) com seu “Por Que Ler os Clássicos”. Umberto Eco (1932 – 2016) reflete sobre o ler, os livros e o futuro da leitura em várias obras como “Sobre a Literatura”, “Confissões de Um Jovem Romancista”, “Não Contem Com o Fim do Livro” (este em coautoria com Jean-Claude Carrière) e “A Memória Vegetal”.

Mas há muito outros. Podemos ainda elencar “A Arte do Romance”, de Virginia Woolf (1882 – 1941); “O Escritor e Seus Fantasmas”, do argentino Ernesto Sabato (1911 – 2011); “A Arte do Romance”, do escritor checo Milan Kundera (1929 – 2023); “O Espírito da Prosa”, do brasileiro Cristovão Tezza; “Romancista Como Vocação”, do autor japonês contemporâneo Haruki Murakami; “A Questão dos Livros: Passado, Presente e Futuro”, de Robert Danton, e “O Mundo da Escrita”, de Martin Puchner.

De minha parte, leitor contumaz desde os 10 anos de idade (marca que converge para a construção de uma carreira pessoal de quase meio século ininterrupto de leituras), arrisquei-me a oferecer uma modesta colaboração nessa encantadora seara dos livros que versam sobre livros, direcionada aos amantes da literatura, ao produzir e publicar uma obra contendo trinta e poucos ensaios literários. Intitulado justamente “Literários”, o volume reúne uma trilogia de livros de ensaios, que versam sobre elucubrações oriundas da sucessão das camadas de leituras desenvolvidas ao longo da vida, e suas interlocuções com outras obras e autores.

Autografo o livro neste sábado, dia 7 de outubro, na Feira do Livro de Caxias do Sul. Para detalhes, leia ampla matéria produzida pela jornalista Silvana Toazza clicando AQUI.

Para encerrar este texto à altura das expectativas de quem ama a leitura, evoco a escritora polonesa recentemente nobelada, Olga Tokarczuk (Nobel de Literatura em 2018), em uma frase extraída de um dos ensaios integrantes de seu também livro sobre livros, “Escrever é Muito Perigoso”, e que parece resumir a essência dos membros da nação dos leitores, servindo-lhes de lema: “Sim, estamos aqui para ler”.

Marcos Fernando Kirst é jornalista e escritor e um dos editores deste portal.